UNIÃO DE CORES NO MEMORIAL PARATODOS


A literatura salvou-me de uma vida de sentimentos mórbidos
(Betto Barquinn)



Rua Seis. Foi lá que descobri que não era livre. Não como pensava. Passei parte da minha vida nos guetos. E não venha me dizer que sabe o que é viver assim, pois não sabe. Você tem a sensação de ser enterrado vivo: um espólio. Tendo os seus pensamentos, sua emoção, sendo deliberadamente massacrados. E você morre por falta de auto-estima. Só quis conquistar o meu espaço. Ser judeu nunca me fez diferente. Diferente era não pensar como eles. Não penso como eles. Fui ignorado e ofendido. Chamado de anti-raça e tendo que abaixar a cabeça diante do anti-semitismo. Tive que ver o meu povo espalhar-se mais uma vez pelo mundo, fugindo de uma guerra travada a séculos. Horas labialmente disfarçada. Cenas de intelecto fraco e alma azeda.

Passei a infância achando que não chegaria à adolescência. Seria capturado e morto. Molestariam a minha ingenuidade e terminaria os meus dias numa câmara de gás. Vidas cercadas pelas grades do Apocalipse. Rudes barras de ferro dos campos de concentração. Farsa armada e doentia. Racistas que se veem como deuses. Acham-se capazes de separar as raças e ser os senhores do universo. O que a raça pura ariana tem a mais que o resto da humanidade? Negros, mestiços, amarelos… europeus, africanos, asiáticos, americanos… Somos todos uma cor? O caráter é uma cor? Deus é uma cor? Não vou passar a vida toda sendo apenas uma cor. Ninguém pode me julgar pelo meu caráter, meu gênero, minha etnia, minha raça. Não vou deixar que estes doentes conquistem o meu espaço. Não vou deixar que me pisem, esmagando o que ainda resta-me de bom A lembrança do afeto que meus pais sentiam um pelo outro As histórias que ouvi de nossos ancestrais Os Templos Sagrados, edificados em nome do Senhor Os utensílios e instrumentos domésticos milenares Moedas antigas e o orgulho de sermos os mesmos desde o princípio. Meus pais diziam que se eu absorvesse na memória a essência do Espírito, abrindo os olhos para a intuição; teria a sensibilidade aflorada na alma: e em mim encontraria a felicidade. Nunca é tarde para crescer, pois o tempo de Deus é eterno. Portanto, meus pais aconselharam-me a nunca ter medo de me arrepender e voltar atrás. Voltar atrás e perdoar. Voltar atrás e pedir perdão. Porque só os grandes são capazes de reconhecer os seus erros. Esses foram os meus pais E era de se esperar que essa família feliz jamais se separaria. Por isso eu, que jamais pensei em sair de casa, vivo à margem da sociedade. Família feliz? Sim, éramos felizes. Pena ter sido tudo muito diferente, prematuro, trágico e  cruelmente fatal.
Os neonazistas são fúnebres. Aniquilam. Sucumbem. Matam a alma da gente. Eles idolatram a miséria que corrói os seus espíritos. O holocausto é um fato lastimável. Não adianta fechar os olhos e fingir que tudo não passou de um pesadelo execrável. Vivo de luto porque perdi quem amava. Arrasto-me por noites infindas, indo e vindo ao cemitério, onde restos simplificam o que um dia fomos. Preciso voltar ao mausoléu e estar junto ao túmulo daqueles que ensinaram-me a ser um líder: a jamais ouvir insultos e ficar calado. “Cada um é seu próprio caminho”  dizia meu pai. “Cabe a você seguir os seus próprios passos ou deixar que façam isso em seu nome”. O rabino disse-me certa vez na Sinagoga que o homem e seu sonho são como irmãos. Caminham juntos. Um ao lado do outro. E são infinitamente distantes quando resolvem ser inacessíveis a si mesmos”. Ou você é a verdade,  disse-me ele  ou é melhor não querer ser mais nada. “Sem ideal você é um homem morto  completou. Capaz de conduzir os seus irmãos ao escárnio da Ku Klux Klan, ao ódio indigenista, ao extermínio dos judeus, a ser um eterno negrinho alforriado da senzala… e ao fim da sua própria casa.

Pai e mãe, nós velamos com amor e respeito, pois são únicos. Os meus já se foram Mortos. Assassinados. Ainda hoje vejo famílias enlutadas pelo horror. Oh, Deus quando isso vai acabar? Silêncio. Ausência. Medo. Nada. Hoje abracei meu irmão; o sonho, e o afaguei embrulhando-o em jornal. Faz muito frio à noite no meu inconsciente, sabe. Não sou nenhum personagem de musical da Broadway. Envelheci. Não sou mais um menino. Nem sequer me pareço com as fachadas glamourosas das vitrines dos teatros da Times Square. Hoje li no jornal que Peter Pan morreu. E eu, que nunca estive vivo,  acordei morto. Morto. Vivo. Vivo e morto. Morto-vivo. Vivo ou morto? Silêncio. Temos que sobreviver amanhã.

Solidão. Quando te descobri na Rua Seis, achei que eras um poeta. Alguém que falava coisas que eu não podia entender. E você partiu, levando o fogo que me aquecia. Não explicou-me a que veio. Não disse adeus ao partir. Você foi o anjo maldito que não exitou em me deixar. Sinto-me só. Profundamente só. Homeless.


Faz muito frio à noite na rua, sabe. Mas temos que sobreviver, amanhã.

CONTACT BETTO BARQUINN:


UNIÃO DE CORES NO MEMORIAL PARATODOS™ © copyright by betto barquinn 2010
TODOS OS DIREITOS AUTORAIS RESERVADOS BY BETTO BARQUINN

Comentários

  1. Raul Bernardo Puentes14 de junho de 2010 às 20:12

    Que talento, menino. Cara, fiquei arrepiado lendo esse conto. Muuuuuuuuuuuuuuuuito bom! Abs!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

ETERNAMENTE ANILZA!

PRESSENTIMENTO

COLOQUE O AMENDOIM NO BURACO DO AMENDOIM