NATAL EM TIRESIA


¿Ódio, para que te quiero si tengo el alma para la mar?
(Betto Barquinn)



Ela gostava de pequenos sentimentos. Pouco ostensivos, é verdade, mas afáveis. Daqueles que dá para a gente abraçar, levar para baixo do edredom, beijar na boca, e dizer... te amo! Gostava tanto, que guardava-os em potes envidraçados, enfeitados com rendados coloridos. Um coração tão grande assim, não haveria de bater diferente. Fazia tum! tum! tum! até mesmo quando sentia fome ou frio. Porque para ela a vida possuía uma magia tão apoplética, que deixava-a boba de viver. Extasiada! Dizia todos os dias aos inimigos o quanto os amava. Não queria poupar à ninguém dos seus bons sentimentos. E tum! tum! após tum! tum! ia espalhando o melhor de si aos que mesmo por casualidade, esbarravam em sua dolce vita, arrastando-os consigo para o seu interior de felicidade infinita. Chamava-se Tiresia. Uma pessoa humana tão extraordinária, que podia ser santa, podia ser puta, podia ser preta, podia ser culta, podia ser branca, podia ser Mantra! E era. Ainda há pouco, essa mulher de sentimentos nobres sofrera tanto, vivera vira-lata da sorte, engolira salivadas de desgosto, sustentara o sorriso sob lágrimas, carregara o insulto nas costas, envelhecera mil anos à dez, suportara, suportara, suportara Ainda há pouco, o susto tomou o lugar do seu coração, e com medo do próprio enfarto, rezara, rezara, rezara Era uma solitária filha-de-ninguém e pelo andar da carruagem parecia que seu doce caminhar levava-lhe apressadamente a lugar nenhum. Sofrera calada d’alma diuturnamente anos a fio. Não deixou-se abalar um milímetro, porque sabia que se seu destino era ser infeliz, já o estava vivendo completamente, cumprindo a missão com a primazia dos mártires. Caso lhe acontecesse o contrário, sendo-lhe reservado um futuro docílimo como pães de açúcar, então ela estaria viva quando os dias melhores chegassem. Achava que ninguém era digno de pena. Dizia que pena é o sentimento mais último que alguém pode ter. Acreditava plenamente nessa tal felicidade libertária que é capaz de transformar a água em vinho.Tinha uma fé inabalável no lado oculto da vida. E essa aliás, embora parecesse árdua, nunca lhe decepcionara. Mesmo durante a overdose, onde tudo parecia esvair-se de si, milagres aconteceram e ela sobreviveu. Mesmo quando esmurrava a cara no espelho, roxa de raiva, via os hematomas sumirem e a paz chegar. Mesmo quando vasculhava as gavetas a procura de uma pedra ou um misero pó de crack que fosse, talvez esquecido no fundo do móvel por acaso, e não encontrava nada, ainda acreditava na sorte que não tinha. Mesmo quando os cobradores batiam-lhe à porta, trazendo-lhe ossos indigeríveis, aparecia trabalho, fazendo-lhe pagar moeda à moeda o que devia. Mesmo quando insistir em viver tornou-se um ato inimaginável, e de pé na janela pensou em pular, o vento soprou-lhe sonetos embalados para presente, em forma de Machado de Assis, e não morreu. Porque têm dias que pastam lentos, outros rápido qual trovão, mas todos passam. Ninguém é frágil demais que não possa viver o dobro dos problemas que tem. Ninguém é forte o suficiente para rejeitar ser feliz. Portanto, ela acreditava que aquela nuvem negra também passaria, levando para bem longe do seu coração, àquele bode preto pasmado à porta. E foi o que aconteceu.

Esta manhã, cedinho, Tiresia arrastou-se do quarto à sala, varreu-se para debaixo do chuveiro, abriu-o, e fez chover em seu deserto interior. Depois do banho sacudiu-se pela casa, escorrendo pelos cantos como se acabasse de sair do mar. Pingava, pingava, pingava Sussurrava alguma coisa que só ela ouvia. Cantarolou uma música qualquer, daquelas que a gente usa como trilha sonora para passar o tempo. E comprimiu-se dentro de uma roupa apertada, para depois tirá-la. Porque não era mulher de segunda pele. Despida de si mesma, arrumou a sala com flores. Na cozinha, preparou uma espécie de “mata-fome”, daqueles que a gente faz quando mora sozinho e anda nú pela casa. Comeu. Arrotou. Tomou suco de rosas. Sorriu para parede. Masturbou-se com os pés em cima da pia, lambendo o dedo como se fosse um pênis. Comeu uma banana-figo. Lavou as mãos. Descascou um abacaxi bem maduro e dulcíssimo, daqueles que o feirante diz: Esse é bom para hoje, madame! E excitada pela sobremesa, acariciou os seios úmidos, melados e fartos de volume, silicone e suor. Lambeu-os até a ponta dos rijos mamilos sabor-hortelã. Saboreando-os como se degustasse o mais inebriante favo de mel. Teve dois ou três orgasmos seguidos, gozando consigo mesma na fria pia de mármore azul. Lavou novamente as mãos, ensaboando um pouco mais a ponta dos dedos quentinhos. E com o sexo inchado, percebeu que agora, era o espelho que lhe sorria descaradamente Ninguém resiste a um orgasmo  pensou. Nem mesmo um espelho! Molhada de prazer, pingou, pingou, pingou até secar. Quando pensava em parar de acariciar o clitóris, tomar outro banho e colocar a roupa, alguém bateu-lhe à porta, mudando definitivamente o destino de uma mulher que acabara de ter um orgasmo solitário na manhã de natal  fritando rabanadas.

Tiresia vestiu-se rapidamente e correu ofegante até a porta. Abriu. Ninguém. Paralisada, pensou que ficara  louca. Mas havia alguém ali fora a alguns minutos atrás Talvez tivesse ido embora. Talvez demorara tanto para colocar a roupa, que tivessem desistido de esperá-la. Talvez tivesse pensado ouvir as tais batidas na porta. E só fora fruto de sua imaginação gozosa Mas havia alguém sim, ali fora. Embora ela não pudesse ver. Então fechou a porta, tirou a roupa, deitou-se na cama com as pernas semi-abertas, e com as vergonhas à mostra, relaxou. Ficava bastante excitada nessa época do ano, por causa do calor excessivo assando-lhe a carne. Era natal. As rabanadas estavam quase prontas, o peru crocante era de dar água na boca, a farofa de miúdos com passas estava cheirando até na casa do vizinho, o vinho envelhecido à décadas, descansava na adega à espera da ceia, o bolo de chocolate com nozes esfriava na pia, a maionese de frutos do mar gelava no freezer, os bombons de cupuaçu estavam divinos, o empadão de crustáceos quentinho quentinho, parecia dizer: me come gostosa! Enfim, Tiresia estava feliz, mesmo tendo que passar seu primeiro natal sozinha  longe dos amigos.

Esqueci de dizer que depois que nada deu certo no Rio de Janeiro, Tiresia mudara-se para Natal, Rio Grande do Norte, no afã de recomeçar a vida zerada. Casa nova, cidade nova, novos amigos por fazer, e uma velha história deixada para trás. Feliz sim, porque parecia que o leme virara a seu favor. E a calma chegara-lhe timidamente, trazendo a vida de volta para casa. Voltando ao dia de hoje, Tiresia estava mais para gorro de Saci do que para gorro de Papai Noel. Estava mais para lobo guará do que para rena do nariz vermelho. Estava mais para coqueiro do que para pinheiro. Estava mais para sol do que para neve. E ciente disto, organizou um natal tropical. Quebrou todas as garrafas de vinho francês com uma marreta. E preparou uma batida de pitanga com cachaça de alambique, cajuína e suco de manga. Quando estava de pilequinho, correndo desnuda pela casa cantarolando “Minha Éguinha Pocotó”, notou que novamente batiam-lhe à porta. Correu nua assim mesmo, pois não iria perder tempo com bobagem… Em um rompante, abriu a porta com as duas mãos, deixando o copo de requeijão que usava para tomar a batida, cair no chão  espirrando cacos de vidro para todos os lados. Olhou, olhou Pensou em fechar a porta, mas desistiu. Pensou em sair correndo nua pelas ruas do bairro e se oferecer para o primeiro bem dotado que passasse. Pensou em jogar toda a comida fora e pedir uma pizza. Pensou em apertar um “cigarrinho do capeta”, mas seu fornecedor só tinha lhe mandado um bem fininho e malhado... Melhor guardar para a hora da Missa do Galo, e viajar, imaginando o Papa peladinho  pensou. Ficou parada à porta por quase meia hora. Os vizinhos passavam na calçada escandalizados com aquela cena natalina: Uma mulher adulta, vestindo apenas um gorro vermelho, totalmente depilada, segurando um “mata-rato” entre o polegar e o indicador, esperando sabe-se lá o quê, aparentemente bêbada, gritando: Cadê você?!

Uma senhora que enganara a morte a pelo menos dez anos, passando assim dos cem anos de idade, ficou tão escandalizada com aquilo tudo, que começou a berrar: Essa carioca é muito da sem-vergonha! Parece que “cheira maconha”! Escuta aqui minha filha, aqui não é Rio de Janeiro, não! Essa é uma cidade familiar! E não a zona de onde você foi expulsa! Na minha época, mulher como você entrava na vara! É um absurdo num dia santo como este, essa quenga desavergonhada, vir bancar a meretriz aqui na nossa terra. Garota, veste logo uma roupa decente, ou não sei não! A vovozinha histérica gritava tanto, mas tanto, que antes de cair no chão, vítima de um enfarte fulminante, acabou despertando Tiresia daquela letargia-alcoólica, fazendo-lhe fechar a porta imediatamente. Cerrada em casa, observou a retirada do corpo da velha, escondida atrás da cortina da sala. E às gargalhadas, bradava: "A velha que enganou a morte por tanto tempo, fez tanto escândalo, que a morte achou ela! Eu! Eu! Eu! A velha boca mole se f.u.d.e.u!". 

Passado o susto, assim que o rabecão dobrou a esquina, lembrou-se que havia esquecido o assado no fogo. Correu para cozinha. Retirou-o delicadamente do forno, arrancando-lhe uma das coxas violentamente  com as mãos. Provou uma lasca, e outra, e outra, dizendo: "Essa p.o.r.r.a está meio desmantelada, toda troncha e com uma aparência horrível, mas está boa para c.a.r.a.l.h.o!".

Quando preparava-se para desossá-lo totalmente, ouviu mais uma vez as tais batidas na porta. Largou o assado no chão da cozinha e correu mais uma vez até a porta, porque algo lhe dizia que agora havia alguém lá fora. Dito e feito! Ao abrir a porta, deu de cara com um homem de aproximadamente trinta anos, calvo, barrigudo, vestido de anjinho de procissão, cheirando à álcool e fumando um “ingênuo” cachimbo de crack. Ambos assustaram-se mutuamente. Ele, por vê-la nua. Ela, por vê-lo vestido com aquela roupa ridícula, com asas de papelão dourado  coladas nas costas. Ficaram alguns minutos parados, olhando-se. Depois de uns “tapinhas” naquele “cachimbo da paz” inusitado, Tiresia falou-lhe: "Vem cá, eu te conheço?!". Ele respondeu-lhe: "Sim, você me conhece! É que você não está ligando o nome à pessoa. Eu sou o seu anjo da guarda, gata! Vim para te fazer mais feliz do cadela no cio, descabelando o palhaço!". Mais feliz do que pinto no lixo! He! he! he! Diante de tamanho “romantismo”, Tiresia cravo e canela, ficou apaixonada. Era amor à primeira vista Deram um beijo técnico, daqueles de novela pornô mexicana made in Brazil, e fizeram amor ali mesmo na soleira da porta, enquanto os vizinhos observavam a tudo  horrorizados! Ignácio, o Anjo, gostou tanto que quis repetir. Ficaram ali por mais duas horas, repetindo, repetindo Repetiram tanto que alguns vizinhos foram para casa dormir mais cedo, para ver se o galo cantava três vezes  na cama! Todos foram invadidos pelo espírito de natal, embora mais parecesse um espírito de porco, fazendo amor com o amigo oculto de fora. Era mão boba para lá, tapinha não dói para cá, corredor polonês sem cueca, cabra-cega só de calcinha, fotos no colinho do bom velhinho, e todo o tipo de brincadeira sodomita. Naquela rua nunca tivera uma festa de natal tão animada, grupal, socializada e democrática assim Era um tal de tira a mão daí e bota aqui de me deixa botar o carro na sua garagem... de quem se deitar por último é mulher do padre... de sanduíche recheado com salsichão de quem põe, põe, quem não põe, leva de ninguém é de ninguém, então, vamos fazer neném! De “panettone comestível” de “se de quatro ninguém é normal, então, pega no meu p.a.u!”. Todos davam o que tinham e o que não tinham E de tudo punham na boca! Uns só queriam brincar de trenzinho. Outros só de fazer upa! upa! no bom velhinho. E a maioria topava de tudo! Na manhã do dia vinte e cinco de dezembro, muitos ainda festejavam  uns no dos outros. Tiresia finalmente vestida, preparava o café da manhã para Ignácio e todos os outros homens que nem sequer o nome sabia, mas que também com ela dormiram. Movidos por essa imensa confraternização, podia-se ouvir na casa ao lado, um grupo de feministas lésbicas não-assumidas, vestidas como os integrantes do Village People, que queimavam sutiãs e cuecas, cantarolando:
"Só não vale dançar “homo” com homem, só mulher com mulher!".
E servindo seus convidados e penetras, penetrados e penetradores, Tirésia declarava: Então é natal! Podem comer quem, e o quê de quem quiserem! O almoço de hoje é o jantar de anteontem, que aliás é a ceia de natal do ano passado  requentada!
O natal em Tiresia provocava emoções diversas. Mas todas muito calorosas, diga-se de passagem. Aliás, já que está de passagem, por que não entra, tira a roupa, e vem brincar comigo?!  dizia. 
Sendo uma pessoa muita dada, ela costumava dizer que na casa dela todos comem. Ou como adorava exclamar: Aqui em casa ninguém morre de fome! Onde come um, comem dez! Mas calma, só cabe três por vez!
Quando Ignácio pediu-lhe em namoro, ela respondeu:
Nunca mais quero namorar na vida! Não é pessoal a menos que o pessoal seja comigo! Você se apaixona por uma pessoa, ela invade a sua vida com uma desculpa qualquer, começa a controlar o ar que você respira, porque diz que sabe o que é bom para você. Te obriga a virar uma imbecil, e quando você está bem apaixonada, ela te larga com o “fuck you” pregado na testa. Espalha para todo mundo que você é uma vadia ruim de cama, que fuma duzentos cigarros por dia, que vai ao banheiro de porta aberta e sai sem lavar as mãos. Diz que você deveria parar de fumar charuto, que fede a cigarro, que mastiga de boca aberta, que transa com todo mundo.  Afirma que você é racista, só porque nunca transou com asiáticos. Diz que você está velha demais, gorda demais, e com celulites, rugas e estrias demais, para arrumar um homem que preste. Deduz sabe-se lá porquê, que você é uma aleijada emocional sentada numa cadeira de rodas quebrada, que seu QI é de coeficiente zero, que você se veste como uma prostituta da Vila Mimosa, que se maquia como travesti de feira, que além de tudo é lésbica, só porque sente tesão por mulheres grávidas, que você só cheira a sexo, que seu sexo fede, que você é viciada em “leite”, que você gosta de ovos mexidos e fertilizados no café da manhã Te convence a fazer aquele aborto que você nunca faria, te transforma em alcoólatra, também viciada em êxtase e ácido, joga na sua cara que nenhum cara te liga após transar com você Fala que a sua moral é imoral. E que você é mais suja do que pau de galinheiro. Berra para os vizinhos ouvirem que você é tão santa quanto uma freira sexualmente ativa e devassa. Provoca dizendo que você é depravada, só porque guarda consolos de vidro na geladeira, ao lado das cenouras, dos pepinos e dos nabos. E completa dizendo que agora sabe porque você diz para todo mundo que “cozinha com amor” Mente dizendo que você é promiscua, só porque você admite que perdeu a conta de com quantos transou na noite passada. Provoca de novo, dizendo que você é louca, só porque seu terapeuta é gay. Insinua que você é careta, só porque não gosta de sexo grupal com gordos. Diz que você é alienada, só porque não sabe quem descobriu o Brasil, ou que o homem já foi à lua. Diz que você ronca alto demais, solta gazes demais, arrota azedo demais, tem o hálito acebolado demais, e que se raspasse as aquisilas de vez em quando, ou tomasse banho vez por outra, seu cheiro melhoraria consideravelmente o avanço da camada de ozônio. Te irrita dizendo que você é masoquista, só porque gosta de apanhar. Volta a provocar com acessos homofóbicos, só porque seu terapeuta ainda é gay. Te deixa com medo, dizendo que você vai para o inferno, só porque saiu com o cafetão do namorado do pai do seu melhor amigo. Afirma que você é ingênua demais por acreditar em Papai Noel aos trinta anos de idade. Afirma que com alguns parafusos a mais, e litros de silicone a menos, você bem que se tornaria atraente. Diz que se você ficasse calada, até que não seria de se jogar fora. Lembra-lhe que se você não fosse analfabeta saberia ler. Acaba com seus dotes de gourmet internacional, dizendo que se você soubesse ao menos fritar um ovo sem botar fogo na casa, talvez servisse para alguma coisa. Usa da inveja e da falta de cavalheirismo para te ofender, dizendo que quanto mais se arruma, mais feia você fica. Afirma que você mudou muito nos últimos anos. Que não é mais aquela por quem ele se apaixonou Inflamado, ressalta que se você gostasse de trabalhar, haveria um parasita a menos no mundo. Te deixa revoltada quando recorda que se você não tivesse sido pega transando com a empregada da namorada da irmã do seu ex namorado, na cama dos pais dele, aquela ainda seria uma família hipócrita, mas feliz. Ninguém teria cortado os pulsos...coletivamente! E quando você acorda nua na cama de um motel para porcos, com uma cueca enrolada na cabeça, descobre que está só, que sua bolsa foi roubada, que não usou camisinha, e que agora a sua vida não existe mais… Por isso odeio me apaixonar!
Chocado(a)? Calma. Você ainda não viu nada! Então, para que veja, sigamos com a história de Tiresia A vida seguiu seu rumo natural, feito enxurrada que arrasta tudo por onde passa. Assim o natal em Tiresia por puro acidente, provocou a magia do amor, do lúdico, do familiar, do fazer o bem sem olhar a quem, embora parecesse mais um roteiro de pornagrafia pesada! Mas mesmo assim, foi um natal inesquecível e simples  como o amor. Até porque, Tiresia foi penetrada por tantos novos amigos naquela noite, que finalmente sentia-se preenchida e protegida, pela frente e por trás. Às vésperas do ano novo, descobriu que estava grávida. E mesmo que não soubesse de quem, desejou imensamente que fosse de Ignácio. Afinal, ele já estava ali mesmo. E se nada desse certo entre os dois, ela ainda assim, poderia tirar uma boa pensão alimentícia do amado e criar o filho num colégio interno, sem precisar trabalhar. Fazia planos para o futuro. E isso a deixava tão excitada que só pensava em sexo. Tiresia era uma comediante de humor tão refinado, que na maioria das vezes nem ela mesma sabia o que estava dizendo... Tinha uma sinceridade apodrecida entre dentes, escorrendo pelo canto da boca, doce e fria, como o beijo da morte. Uma mulher – 'sim senhor, não senhora', obediente e seca, feito lâmina bruta que se dobra e não se quebra. Tiresia teve que mentir para ganhar a vida, sim senhor! Porque há momentos na vida que o sapato aperta onde a gente menos espera. E é aí que a dor aumenta. Teve que sair de cena muitas vezes com o rabo entre as pernas. E as pernas entre o rabo, sim senhora! Porque há momentos na morte que o melhor é se fazer de vivo. Assim, foi vivendo como toda cadela que se preze... de quatro, machos por cima, e patas firmes acolchoando-se no chão. Dizendo para si mesma que se de quatro ninguém é realmente normal, então relaxa Tiresia, encaixa, desencana, rebola, rebola e goza filhinha! Com os olhos cheios de lágrimas, olhou profundamente para o amado Ignácio nos olhos, que também estava com os olhos cheios de lágrimas, e disse-lhe delirando:
Eu quero me casar virgem, nem que seja do ouvido! Estou me sentindo mais larga que a Marginal Tietê em véspera de feriado prolongado! O que uma mulher drogada e grávida não faz por dinheiro, jóias, um negão avantajado e meia dúzia de balas Juquinha?! Cada gestante tem o desejo que merece. E realiza logo o meu, senão o seu filho vai nascer com a cara daquela boneca inflável, bocuda, recondicionada e leitosa, que usamos após achá-la na lixeira do prédio! Estou com sede, é verdade... Só você, meu garanhão, sabe o que eu gosto de beber no gargalo, jorro à jorro até o pitu fazer bico! 
E completava um pouco mais:
Não tenho mais vícios ilícitos. Agora meu barato é tarja preta! Eu parei de fumar chá verde no dia que peguei-me subindo pelas paredes com um cigarro na boca, e um charuto enfiado, você sabe onde! Aí descobri que pequei mais por falta do que por excesso. E suspirei gemidos com aquilo roxo, dolorido, deflorado, queimado. Fui violentada muito cedo com um cabo de vassoura enfiado até a piaçava... Aí tomei gosto pela coisa, e não parei mais de gostar. O meu consolo é que não vou dizer que nunca experimentei um consolo... Só que me dói sentar para falar sobre isso. Sou viciada em tantas coisas, que se largasse uma, nem saberia onde enfiar todas as outras. Na próxima encarnação quero nascer galinha e piranha – ao mesmo tempo! Adoro animais velozes, salgados e de água doce Galinha não é peixe Piranha não é ave E eu que nunca fui santa, já fiz de tudo nesta vida, até voar e nadar assobiando e chupando cana, para nunca mais dançar. Não vou morrer encostada na casa dos outros Nasci filha única de mãe solteira-escrava-doméstica. E fui criada no quarto de empregada de um casarão neo colonial em Botafogo. Como filha da mucama-criada, não tinha direito à nada. Nem sequer podia chegar na sala de TV, onde os patrões e seus asseclas, refestelavam-se no sofá fazendo troca de casais, comendo guloseimas, fumando orégano e falando de economia até póstumas horas. E eu que não participava de nada, inútil filha da empregada, espiava a vida por debaixo da porta da cozinha  junto com o cachorro. Só um pequeno detalhe nos diferenciava. O cachorro podia passar da cozinha para sala. Eu não. E eu ali... invisível, vendo o preconceito passar por mim montado nas costas do cão. Mamãe que chamava-se Cesaréia Encarnação dos Santos, dizia-me após alguns tragos de cachaça com acetona, que os patrões nos olhavam, mas não nos viam. Para eles não éramos gente, por isso nos tratavam como o lixo que achavam que éramos. Diziam que família era tudo que tinha o mesmo sangue. E eu não era um deles. Por isso ficava ali, com a alma estuprada no assoalho da cozinha, sentindo-me como quem tem sangue de barata misturado com água nas veias. Sem família, com pouco espírito, reciclando as sobras do almoço do cachorro para comer no jantar. Cresci seca de afeto. Ressecada de tristeza. E depressiva até a alma. Minha mãe não tinha tempo para viver a felicidade dela. Que dirá a minha... Envelhecemos juntas. Ela morta por fora. E eu morta por dentro. Duas mulheres abandonadas à própria sorte. Pobres, pretas, podres. Duas mulheres com a miséria tatuada na alma. E com muito azar no recheio. Mamãe acabou com cirrose. Desesperada, matou-se tomando criolina com champagne francês.  E eu, órfã, acabei moradora de rua  desejando a morte bem mais do que a vida. O tempo passou, borrando-se de medo que eu fizesse alguma m.e.r.d.a, mendigando o pão que o diabo amassou Estava desterrada e arrancada de mim mesma  até últimas sílabas. E posso garantir-lhe que não há nenhum idioma falado nesta droga de planeta, que seja capaz de traduzir, sem intensificar a minha dor, o que sinto. Mas estou bem Só posso te dizer uma coisa, querido: Ninguém nunca mais me fará de otária! Se você quer me amar, me ame. Só não me peça para sentir o mesmo Porque ninguém nesta vida é capaz de dar o que não tem Nem eu.

O ano novo chegou. Tiresia acreditava que seria finalmente feliz. E seria, só que em alguns anos depois. Mas isso já é outra história Os fogos já estão estourando lá fora Copacabana apesar da nuvem de fumaça, parece linda, vista daqui do meu quadriplex na Atlântica. Esse ano tem até telão com contagem regressiva Um luxo! Minha mulher já me chamou para abrir a champagne E como não tenho mais tempo para falar de Tiresia Feliz Ano Novo! E quando tiver problemas, lembre-se da história da minha mulher, que eles logo passarão. Ah! deixa eu ir Tiresia está mostrando os fogos para o nosso filho, Ovídio. Ele está com cinco anos de idade e já entende o que é o Reveillon Tiresia está explicando para ele o significado do nome dela. E essa eu não posso perder Happy New Year!


Sobre Tirésias:

Na mitologia grega, Tirésias (em grego, Τειρεσίας) foi um famoso profeta cego de Tebas – famoso por ter passado sete anos transformado em uma mulher. Era filho do pastor Everes e da ninfa Chariclo.

Certa vez ao ir orar no monte Citorão, Tirésias encontrou um casal de cobras venenosas copulando, e ambas voltaram-se contra ele. Ele matou a fêmea, e imediatamente tornou-se uma mulher.

Anos depois, indo orar no mesmo monte Citorão, encontrou outro casal de cobras venenosas copulando. Matou o macho e tornou-se novamente um homem.

Por Tirésias ter se tornado tão ciente a respeito de ambos os sexos, ele foi chamado para decidir a questão levantada por ocasião de uma discussão entre Zeus e Hera sobre se é o homem ou a mulher quem tem mais prazer na relação sexual. Mas ele sabia que a sua decisão iraria sobre ele o deus derrotado.

Hera dizia que o homem é quem tem mais prazer, Zeus dizia que é a mulher. Tirésias decidiu a questão: "se dividirmos o prazer em dez partes, a mulher fica com nove e o homem com uma." Hera, furiosa por sua derrota, cegou Tirésias por vingança. Mas Zeus, compadecido e em recompensa por Tirésias ter dado a ele a vitória, deu-lhe o dom da mántis, a previsão.

Uma versão alternativa do mito de Tirésias conta que este ficou cego ao ter visto Atena se banhando nua em uma fonte. 

FIM




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