CARNE NEGRA DE SYREETA E MILES



“Torna-te quem tú és”. (Niestchie)

“Ama ao próximo como a ti mesmo”. 
(Jesus Cristo)



Desabafo de Miles à Syreeta, sua filha, numa tarde sem cor.

Não, menina, não chores. Eu sei muito bem o que estás sentindo. E é nessa hora que me indago, por quê voltamos aqui? Reencarnamos para isso?

Eu tive muito medo de te dizer essas coisas, mas agora que começamos não podemos parar. Há muita intolerância no mundo, sabe. Muita gente má. E nós negros, temos que manter-mo-nos unidos, ou acabam nos matando como fizeram com a nossa História e com a alma do nosso povo. Eu sei o que a impunidade e a intolerância são capazes de fazer com a nossa “gente de cor”. Ainda hoje, vi um homem negro ser arrastado ao tronco como um criminoso sem espírito, só porque abriu a boca e não havia nada ali além de  dentes podres. O homem pedia o mesmo que nós, Syreeta. Respeito.

O homem era você e eu, minha querida. Como negar a ele ou a você ou mim ou a todos os seres humanos, o direito de dizermos o que pensamos? Como aceitar que pelo fato de termos nascido com a carne negra, sejamos tratados como uma anti-raça expatriada; banida de si mesma, e lançada aos porcos como ração que ninguém quer? Eu andei pensando no nosso futuro, menina. E entendi que muitos de nós nunca tiveram a possibilidade de ter dignidade. Foram atropelados pela luva ensanguentada de um miserável qualquer; cheio de ódio, que pensando-se superior por ter nascido branco, quase nos matou por sermos negros.

Eu vi muito engano. No cardápio das relações humanas, muita maldade. Nos vi cadáveres sendo carregados em sacos de lixo. Vi nosso povo sendo humilhado por pessoas menores, sujas, homicidas e antiéticas, que só sabiam de si desprezo, acidez, putrefação, imoralidade, desrespeito, mentira, solidão e morte.

Aí eu acordei e percebi que tudo não passou de um pesadelo do passado. Ninguém mais vai nos humilhar, Syreeta. Porque nós crescemos tanto, que esse mundinho falido deles, não os suporta mais. Acabou! Fomos além da carta de alforria, saímos dos morros e das favelas, e ao invés de guerra civil, propusemos a paz. Agora não tenho mais medo do nosso desterro. Por isso não chores, Syreeta. Hoje sei porque voltamos ao planeta dos desgraçados. Sei que haverá um dia, não tão distante, que sairemos doutores das universidades e senhores do nosso destino. Não, não chores. Temos pés para caminhar. Asas para nos proteger do frio. Inteligência emocional para manter-mo-nos vivos. E uma longa estrada pela frente Temos sonhos, querida. Sobrevivemos a todo tipo de humilhação e suplício. Nosso sangue manchou os mananciais desse chão. Onde houver vida nessa terra, haverá o sangue de nossos ancestrais semeando a resistência. Jogaram-nos nesse continente para que trabalhássemos e morrêssemos. Nós e a nossa casta. Como pagamento deram-nos o nada. Saímos da escravidão com uma mão na frente e outra atrás. Abriram as senzalas e mandaram o “gado” pastar noutra freguesia. Lei Eusébio de Queirós de 1850. Lei do Ventre Livre de 1871. Lei dos Sexagenários de 1885.  Lei Áurea de 1888. A Abolição da Escravatura foi uma piada. O Brasil, após trezentos e oitenta anos de escravidão, foi o último país americano a libertar seus escravos. Mas, porém, entretanto, todavia, contudo… estamos vivos! E ninguém mais do que nós, que levamos conosco a honra e a bênção daqueles que morreram por nós, sabe o que é viver a liberdade deste dia, e do outro, e depois, e depois… Esse é o destino de nossa carruagem de lágrimas, Syreeta. Seguir viagem para o futuro, para o passado, sem esquecer de viver o presente.

No dia que o homem perceber que não é no outro que está o problema, mas em si mesmo No dia que perceber que em si também está a solução Nesse dia, somente nesse dia, haverá amor e paz entre os homens. 

Miles.


(Tragédia no lar - Castro Alves)


Na Senzala, úmida, estreita,

Brilha a chama da candeia,

No sapé se esgueira o vento.

E a luz da fogueira ateia.


Junto ao fogo, uma africana,

Sentada, o filho embalando,

Vai lentamente cantando

Uma tirana indolente,

Repassada de aflição.

E o menino ri contente...

Mas treme e grita gelado,

Se nas palhas do telhado

Ruge o vento do sertão.


Se o canto pára um momento,

Chora a criança imprudente ...

Mas continua a cantiga ...

E ri sem ver o tormento

Daquele amargo cantar.

Ai! triste, que enxugas rindo

Os prantos que vão caindo

Do fundo, materno olhar,

E nas mãozinhas brilhantes

Agitas como diamantes

Os prantos do seu pensar ...



E voz como um soluço lacerante

Continua a cantar:



"Eu sou como a garça triste

"Que mora à beira do rio,

"As orvalhadas da noite

"Me fazem tremer de frio.



"Me fazem tremer de frio

"Como os juncos da lagoa;

"Feliz da araponga errante

"Que é livre, que livre voa.



"Que é livre, que livre voa

"Para as bandas do seu ninho,

"E nas braúnas à tarde

"Canta longe do caminho.


"Canta longe do caminho.
"Por onde o vaqueiro trilha,
"Se quer descansar as asas
"Tem a palmeira, a baunilha.

"Tem a palmeira, a baunilha,
"Tem o brejo, a lavadeira,
"Tem as campinas, as flores,
"Tem a relva, a trepadeira,

"Tem a relva, a trepadeira,
"Todas têm os seus amores,
"Eu não tenho mãe nem filhos,
"Nem irmão, nem lar, nem flores". 






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