ESTRADA DE DAMASCO
Diário de bordo. Marrocos - tarde de um ano qualquer.
E então o céu se abriu, um anjo chegou a mim e disse:
- O Deus que criou o céu e a Terra te saúda.
Nesse mesmo momento uma imensa bola de fogo pairou sobre a minha cabeça. E dela orquídeas de várias cores brotaram. Orquídeas azuis, brancas, roxas, rosas. Essa celestial visão durou apenas alguns segundos. Mas foi inesquecível. Transformou a minha vida.
No dia seguinte mudei-me para Londres. Era vida nova em terras européias. Tudo que eu queria era sobreviver. Recomeçar sem o estígma de quem foi expulso da própria casa. Não tinha motivos para viver no Brasil. Fiquei sem família - sem referencial humano que pudesse seguir, amar, respeitar. Quando meus pais morreram num atentado terrorista, onde eram subsequentemente, homem e mulher bomba, perdi parte de mim. Morri um pouco.
Sair pelo mundo era como desistir de ter um coração. Ninguém me conhecia. Ninguém precisava me amar. Idem.
Quem amaria o filho de um casal bomba, com o rosto cheio de botox? Esquece.
Uma noite em cada porto. Um dia vivido em segundos. Várias cidades e muitos cartões postais... Perdi tudo que tinha significado. Tudo que amo, acabo perdendo. Todos que me amaram morreram. Medo?! Sim, eu sinto medo. Não vou trazer ninguém de volta. Não quero que mais ninguém caia comigo nessa maldição.
Devaneios de alguém que gosta de tudo que vem do amor. Mesmo que sejam amores mofados. Sou alguém que crê em elementais, porque descobriu-se na experiência viva de um amor itinerante. Devaneios de alguém que sofre de síndrome do pânico. Esqueci de tomar meu calmante... Esquece.
Não quero passar a vida toda fugindo. Decidi isso em Marrocos. Mas acabo de chegar em Paris, depois de duas semanas trancado num quarto de fundos, cheio de mofo e péssima calefação, perdido nos escombros de Londres. A ilha é linda. E as londrinas também. Caminhei muito por Londres, movido pelo pensamento macabro de pisar nos pés da rainha. Seria divertido demais, aparecer na primeira página de todos os tablóides ingleses, como o cara que pisou no pé da rainha, e de brinde, puxou as orelhas em abano do pequeno príncipe Charles! Risos. Mas esquece. Esses tablóides não servem nem para embrulhar peixe podre. Entretanto, falemos de Paris.
A cidade luz é linda de fato. Sinto-me como se estivesse em casa, mesmo sendo o lar de outras pessoas. Deveria ter nascido aqui. Essa cidade me traz felicidade. Hoje acordei sentindo-me uma pessoa melhor. Livre daquela maldição que mata tudo que toca. Passei a manhã acreditando mesmo que estou livre da maldição do toque. Ficou a fantástica ilusão de que há vida após a tempestade. Que loucura! Isso é a minha vida?! Vou correndo tomar meus calmantes com cuba libre. Ah! Esquece. Deixe-me aqui com minha adrenalina. Calmantes em mim fazem o mesmo efeito que anfetaminas numa pessoa pseudonormal. Normal? Loucura. Devaneio?! Esquece.
Que bom que eu sempre trago minha camisa-de-força na mochila. Nunca se sabe quando vou surtar. Loucura, loucura, loucura! É... loucura mesmo. Esquece. Voltemos a Paris.
Ontem conheci o palácio de Versalhes, o museu do Louvre, a torre Eifel e o Boulevard. Decidi alugar um minúsculo, ínfimo, apertado, claustrofóbico apartamento estilo caixa de fósforo - lata de sardinha - que é maior, visto pelo buraco da fechadura, do que por dentro. Uma gaiola sem puleiro. Um pardieiro maquiado de palacete. E muito francês para o meu gosto. Mas não é mofado como o de Londres. Minha rinite alérgica agradece. Atchimmmmmmmmm! Saúde!
Do alto do primeiro andar do meu pequeno apartamento, em cima de uma boulangerie de quinta, vejo o mundo cor-de-rosa. Que romântico padecer em Paris! Ah! Se eu tivesse uma arma... Esquece. Sinto-me um judeu francês após a segunda guerra mundial: Vivo. Recomeçando. E isso é o que importa... Mais uma caixa de calmantes e duas ampolas de botox, por favor. Embrulha para viagem. Merci! Esquece.
Daqui, da minha janela bolo de noiva, vejo tudo que esse toldo cafona me permite. Quase nada. Mas desde que o homem inventou o binóculo, minha vida mudou. Para pior! Do primeiro andar, o máximo que consigo ver com os binóculos, é que esse toldo da boulangerie precisa ser trocado. Nojento. Quero ver a hora em que esse toldo vai desabar, levando a boulangerie e o prédio junto... Agora entendo porque esse aluguel é tão barato... Socorro! Esquece.
Vou até Nice, amanhã. Quero conhecer o maior número de lugares possível. E de vez em quando volto para ver se esse prédio milenar ainda está de pé. Socorro mesmo!
Voltando à visão:
E então o inferno se fechou, um anjo caído chegou a mim e disse:
- Orfeu, o deus do botox, que criou o céu e a Terra, te excomunga!
Nesse mesmo momento, uma imensa bola de gelo pairou sob os meus pés. E dela serpentes de várias cores brotaram. Serpentes azuis, brancas, roxas, rosas. Essa infernal visão durou apenas alguns segundos. Mas foi inesquecível. Transformou a minha vida.
O que as visões tem haver com as minhas viagens à França, Inglaterra, Marrocos? Nada. É tudo efeito dos calamantes e do botox. Quanto a você, relaxa, e vê se me esquece. Não tenho nenhuma revelação a fazer. Nenhum discurso politicamente correto. Aliás, tenho sim. Esquece.
Diário de bordo. França - tarde de um ano qualquer.
Segundos antes do toldo desabar na cabeça de uma doce e inocente velhinha francesa, deformada por plásticas, que tomava uns drinks sentada na romântica calçada de uma Paris em neve, o chão tremeu, levando a ela, ao prédio, a boulangerie, e a um farto contrabando de botox; juntos.
Minha sorte:
Acabo de chegar de uma clínica estética que promove a cura das rugas através do botox, no interior de Paris. Não estava em casa na hora do acidente. Coitada da velhinha!
Moral da história:
Não saia de casa sem botox, na chuva, em dias de inverno, para comprar pão e tomar uns drinks. O pão engorda. O álcool também. E além do mais, pode cair um toldo na sua cabeça, carregando um prédio todo com ele. Fique em casa e coma bolachas de água e sal com chá. É mais saudável!
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Muito criativo este conto, Betto. A gente viaja com as suas palavras. Muito bom!
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