O ABRAÇO



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A vida chegou de bonde, e junto com ela, a pé, o teu abraço.

Sem que vivesse de fato abraçado, era como se nunca tivesse se soltado de si mesmo um só segundo, desde a primeira vez que sua alma sedenta de carne vestiu-se de corpo. Aliás, foi ele, o Sujo, que com seus abraços exagerados salvou o futuro da humanidade em amores de cara suja. E dizia:
– Quando eu quero entrar numa casa e me fecham a porta, eu meto o pé na porta. E se a porta não abre, meto o pé na janela. E se a janela não abre, taco fogo na casa!
Chega! De hoje em diante vou abraçar mais e beijar com alma a quem me ama. E aos que me detestam; perdão, mas vão ter que procurar outro para odiarem, ou fazer como eu, que aprendi que desta vida só se leva o que se tem dentro do coração. E eu só quero de meu aquilo que possa me orgulhar. Para tanto, hoje, antes de fazer alguma coisa ao outro, penso no que meu anjo da guarda faria se estivesse no meu lugar. Ou, o que eu seria se fosse o outro. Eu gosto de brincar com as palavras quando elas chegam a mim virgens, como dias que ainda vão nascer. Mas não sou santo. Diametralmente longe disso, sou um monstro de fazer tremer sobrehumanos. Mas não vou justificar meus medos e passar a vida desejando aquilo que poderia ser. Ou ter. Por isso abraço. O meu abraço é o melhor de mim embrulhado naquilo que terei que viver muito para saber o que é. Porque o melhor de mim, senhoras e senhores, é o abraço que ainda vou ser. Vou viver o meu melhor hoje, porque existem espíritos como eu e você, que não deixamos para trás nem depois de mortos... Minha vida é uma bruxuleante chama impressionista, que quando exposta à fogueira das vaidades, é maior do que o próprio fogo. A minha vida sou eu cinza em cinzas, carbonizado no corpo de um lança-chamas e de uma velha alma que um dia eu fui. 
Calou-se.

Ele era filho do operariado. Um sobrevivente. Era um Folies-Bergère gangrenado até a curva do pescoço. Underline. E sentia-se como o Bebedor de Absinto de Manet. Tentava submergir às influências do agouro, comendo mingau pelas beiradas do prato, já que tudo parecia-lhe certo, improfundo, de fato bem-vindo, embora em sua vida desse tudo errado. Ele era gentil e pronto. A tal ponto, que estar perto dele, sorver suas perdas, observar o quanto uma alma batalhadora e deteriorada pelas surras do mundo; ainda assim, consegue ser bela pelo simples fato de ser portadora e consciente de sua interna eternidade; sabe que a sutileza da vida é exposta em papéis encardidos, em natureza-morta, em sermões inflamados, em compaixão avassaladora, afeto desembestado, beleza e sorte fugazes... pois viver é digno mesmo quando só o que se tem de material é o humano. O humano é daquelas coisas que o coração sabe e a mente se confunde toda ao tentar explicar, porque não há palavras que possam explicá-las; e se há, percebemos que somos tantos e somos todos esses que nos habitam; somos o passado do espírito e o presente da carne; somos o futuro e o princípio inteligente do universo; somos átomo; somos tato; somos aquele ser errante que morreu para viver; e viver é isso e aquilo: viver é mágico, é cruel; é amargo como sofrimento e é lírico como a harpa.
– E como se sofre quando o mundo nos vê errado – pensou Sale. Como se vive à margem da sociedade quando antes de chegarmos, o mundo nos vê como menores. Como é inquietante ter que provar diariamente que não somos apenas uma massa de cor. Um borrão em meio a multidão. Um zero à esquerda. A sombra do nada. Como é doloroso ter gritar para a sociedadade que todos somos da mesma raça: a humana. Isso me deixa rouco. Traz-me dor de garganta. Como é humilhante ter que dizer a nós mesmos todos os dias que realmente valemos à pena, quando nos dizem que a nossa vida não vale um tostão de mel coado. Como é árduo aprender a se amar, quando sabemos que crescemos e vivemos todos esses anos sem amor. E que nada na vida do outro é urgente quando somos nós que pedimos socorro. Por isso sempre chegam tarde demais, quando as nossas dores a muito já nos mataram. É... Há tantas coisas na vida de um homem que nem ele mesmo consegue chamar pelo nome.

Todo mundo precisa de um abraço. O operário precisa. A pessoa em situação de rua também. Todo mundo precisa de um abraço e de laço. O professor precisa. O aluno também. Todo mundo precisa de um abraço porque viver não é fracasso. O amado precisa. O desprezado também. Todo mundo precisa de um abraço que afague a alma e afugente o cansaço. O presidente da República precisa. O povo também. Todo mundo precisa de um abraço, mesmo sendo portador de necessidades especiais, e tendo nascido sem o braço. O amor precisa. O ódio também. Todo mundo precisa de um abraço. O violento precisa. O violentado também. Abraço é tato. Abraço é toque. Abraço é coisa de irmão. Abraço é fome de alma. Abraço é espírito de calma. Abraço é perdão.

Todo mundo precisa de um abraço. O poeta precisa. O poético também. Porque pessoas são a herança de um Deus tranquilo, que movido por um amor de abalar a Terra; criou você, seus tesouros e a mim. E ainda teve a delicadeza de criar todo o resto. Embora eu ache que todo o resto seja Deus também. Por isso todo mundo precisa de um abraço. O branco precisa. O negro também. Abraço. Todo mundo precisa de um. O santo precisa. O pecador também. Todo mundo. Precisa. Abraço. O sinônimo precisa. O antônimo também. Abraço. Precisa. Todo mundo. Também.

Olhos encharcados de alma precisam de um abraço. Estrelas cadentes; de amor, também. O incrédulo precisa. O crente também. O ignorante precisa de uma braço. O intelectual, enfim, abraça-o também. Todo mundo precisa de um abraço. O ator precisa. A atriz também. Todo mundo precisa de um abraço. O humano precisa. O desumano também.

Bosh, Bruegel, Rubens, VanDyck, Rembrant e Vermeer precisam de um abraço. Cézanne, Rousseau, Gauguin, Van Gogh, Klimt, Munch, Toulouse-Lautre, e pasmem, Pablo Picasso também!

Todo mundo precisa de um abraço. O escritor precisa. O leitor também.

Pissarro, Manet, Degas, Monet, Renoir e Seurat precisam de um braço. O naïf também.

O bonde chegou de vida, e junto com ele, a trilhos, o teu abraço.

FADE OUT


FIM


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