A TEMPESTADE
1964. Ópium. Nunca mais.
DITADURA. Nunca mais.
Entramos na casa dos treze de dezembro de 1968. O dia do AI-5. Cuidado! Os guardas já devem estar vindo... Apenas sorria e não diga nada. Somente sim ou não. Lembre-se de tudo que ensaiamos. Eles não vão te pegar – se você contar a nossa história. Mantenha o controle e jamais diga o meu nome. Não posso me arriscar. Atravesse o muro e esqueça de todo o resto. Jogue fora esta carta. Ou, guarde-a em local seguro. Aliás – QUEIME TUDO! E coma as cinzas! Lembre-se:
Não nos conhecemos. Apague tudo da memória. A partir de agora – você têm amnésia!
TORTURA. Nunca mais.
Vou te visitar nos dias pares – para não levantar suspeitas. Quando perguntarem quem sou, repita:
"O assistente social vem me ver hoje". E tudo estará resolvido. Caso contrário, os dias pares serão como os ímpares. E você jamais me verá. Dias como tardes de inverno – em noites de áqua e sal. Em branco e preto. Agora vá! E deixe-me pensar um pouco mais... Estarei aqui, ao lado da lareira, lendo “A TEMPESTADE” – de Shakespeare, quando você voltar.
ÓDIO. Nunca mais.
Arcos insinuando Blues – levando-lhe para a Lapa. Dias de brinquedo cercados pela névoa cinza que palpita na noite. Virtudes saciando as atitudes. E os raios do sol, apontando a neve – rumo ao Nirvana. Fiz o meu protesto insano. Agora é a sua vez de falar... Nem todos mentem tão bem quanto eu. Sou implicante e provocador emérito. Tendo na ponta da língua uma navalha de gênero e de vanguarda. Por isso, algum dia eu te explico porque só os fortes sobrevivem.
CENSURA. Nunca mais.
Três pares de sapatos amarelos para ocasiões muito especiais. E quando acabarem, deitaremos na rede com os pés para o ar. Fumaça de cigarro nas nuvens. Wisky e Vodka à mesa. Sirva-se! Preciso ficar em paz e terminar de compor minha Canção do Exílio. Agora, mais do que nunca, tenho necessidade de reler Ferreira Gullar. Preciso de um banho... Sinto o “Poema Sujo”. O mundo anda demorando em ser tão ruím. Guerra, fome, ditadura, exílio,... Quando a gente está triste, tudo parece triste. Mas pior mesmo seria ter sido preso: de novo. Ou morto: Novamente. Prisão é estar fora do Brasil: Vivo ou morto. E não poder voltar para casa-pátria. Y ahora estoy aquí, cariño:
!Tan lejos de ti!
!Tan lejos de ti!
Você não pôde fugir. E eu que sumi – tão cedo não serei feliz. Mas ao menos temos a certeza, de que o nosso pácto foi cumprido. Um de nós ficou vivo. Só não sei dizer quem. Você sabe? Agora chega! Tenho que continuar compondo. É o que me resta. Não vou dar conta de tudo sozinho... Tenho que ficar acordado. Vou fazer aquele chá de cogumelos – que seu carcereiro-torturador, me ensinou. Melhor do que cafeína no meu organismo. Insano.
EXÍLIO. Nunca mais.
¡Nena! Aquí en España, o nascer-do-sol lembra-me seus olhos. E nem sei mais como são os seus olhos... Não importa. ¡Jamás he olvidado de ti! E agora me recordo... Você tem olhos de pôr-do-sol! Perdoe-me. Vivo a tanto tempo longe do meu nascedouro materno, que consigo pensar em qualquer idioma, menos em português. E parece que a distância atacou-me à memória. Ou talvez, seja resquício dos choques elétricos. Das visitas matinais do pau-de-arara à cela do cabra marcado para morrer. Da cabeça afundada num tonel de urina e fezes, todas as tardes. Ou então, das humilhações sofridas nas mãos dos militares. Esses mesmos... que esvaziaram o Estado por poder, dinheiro, covardia e censura. Esses homens-de-verde, levaram consigo o bem social, a liberdade de expressão, a cultura de um povo. E nossas almas. Eles nos mataram, entende? Deixaram nossos corpos vazios. Suicidados. Enfim, a constatação de que fugi do Brasil para não morrer – embora estivesse morto. Um certo sabor de traição no ar – you know?! Sendo um herói-marginal, a lembrança dos amigos apodrecendo em celas cheias de fezes – leva qualquer um, morto vivo ou não, a querer esquecer o pretérito. Ou, não. Mas de qualquer forma – perdoe-me. Estou de mudança para Madrid. Lá a vida é mais romântica – apesar do Franco. O táxi vai chegar daqui a alguns segundos... Vou abrir o gás e esperar. Tem alguns homens me olhando no fim do túnel, sabe? Acho que estou enlouquecendo. Devo sair pela porta dos fundos. Deixe a geladeira no corredor. Nunca se sabe quando eles vão atacar. Veja onde deixei "A Paixão Segundo GH" – da Lispector. Pela heurística vez – meu livro de cabeceira. Sempre ganho na releitura... Agora é "A Hora da Estrela". Relei-lo-ei no avião; ao lado de Clarice. Son las ocho de la mañana, cariño. Hoy no voy a desayunar. ¡Sin ti no tengo hambre, mi amor! No quiero nada de nadie. Ni alguién. ¡Sólo quiero a ti, corazón! Só espero o táxi por mais cinco minutos... ¡Estoy listo! Ajude-me a descer com as malas... Faz calor de manhã no deserto. E frio a noite. Preciso de um novo cobertor.
TERRORISMO. Nunca mais.
Hoje pela manhã ao esperar o táxi, após escutar à "Where's the love", do Black Eyed Peas – ouvi no rádio algo irracível. Na linha ferroviária aqui de Madrid, dez bombas de TNT escondidas em mochilas, acionadas por telefones celulares, eclodiram, fazendo inúmeras vítimas civis – do mundo todo. Cento e noventa e oito mortos – numa epidemia de loucos. O maior atentado terrorista da União Européia, aconteceu agora, debaixo da minha barba. Aqui em frente de casa, na Estação Central de Atocha, vejo a imagem da luta da fanática-loucura, contra os infiéis do mundo civilizado. Uma vida pisada, retaliada, acabrunhada, injustificável. São os ingratos esqueletos com que nos defrontamos. Esperei tanto a chegada do século XXI. E agora vejo que foi em vão. Pensei em envelhecer, ouvindo "Coisas da Vida" da Rita Lee – até meu dígno e ínfimo suspiro. E vivi demais. Sonhei com uma existência onde a inteligência de sinais, vivesse em harmonia com a inteligência de imagens, formando assim, a inteligência humana. Equivoquei-me. O mundo não mudou. As pessoas não mudaram. E eu, também não mudei. A guerra, oficial ou não; continua. Mata. Arranca braços e pernas. Mutila vidas. Despedaça sonhos. Atropela o futuro, enterrando-o num presente voltado ao primitivismo humano – que não ficou no passado. Al-Qaeda ou ETA? I don't no… O que sei é que a sociedade humana jamais foi a mesma, após onze de março de 2004. Estamos no século do medo justificável. Da crise de pânico moral. Vida murcha. Murcha vida. No mundo de provas e expiações, escolha você a resposta. E não vire a sua metralhadora giratória para mim. A guerra é deles. Ou sua. Não minha!
NEUROSE. Nunca mais.
No vídeo crianças sorriem ao som de "Tears in Heaven". Já é tarde para continuar esperando... Preciso ir embora – pensando em Eric Clapton e seu filho morto. Quando for dormir, apague todas as luzes. Não existem fantasmas.
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Betto, você é tão talentoso, que mais parece um ser de outro mundo! Vida londa ao rei!
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