CAIXA PRETA
Ele perdera
o namorado num acidente aéreo e ficara se perguntando: “O que leva alguém
a morrer assim?… tão só”. É claro que a vida do jeito que a conhecemos,
finda. É claro que ninguém nasce para semente. Só as almas vivem para sempre.
Mas por quê?
É realmente
difícil aceitar que um rapaz jovem, saudável, com um futuro brilhante pela
frente, vá embora dessa forma. Como alguém no auge dos seus vinte e seis anos
encerra na mata fechada, ilusões e sonhos, amores e desejos, fé e afetos, — dilacerado
no chão dos pontos finais mais últimos que existem?
Ah, o amor.
Esse sentimento sem preconceitos que faz do espírito santo da gente, artífice
de si mesmo. Ricardo era assim: um apaixonado. Morto o grande amor de sua
vida, — ficou sem chão. Ficou sem teto. E agora, como seria?! Iria
continuar a viver, de certo. Iria sufocar a dor num pranto infinito e
arrastado, recolher as roupas do amado no varal de
corda, e desejar num suspiro profundo que este estivesse parado à sua frente de
joelhos, fazendo aquelas coisas com a boca que só ele sabia fazer. “Coração é terra
que ninguém passeia” — pensou. “Então o que me resta é seguir
vivendo. Seguir vivendo com aquele gostinho de ‘quero mais’ na ponta
da alma. Seguir como seguem todos aqueles que passam por acidentes internos,
silenciosos, calados, inconfessáveis: à flor da pele".
Ricardo,
homem sensato e viril; certamente iria encontrar em algum braço forte e peludo, o seu novo amor. E nesse ponto não tem ‘mas’. Mas, nada. Era botar a
cabeça no travesseiro e chorar tudo que tivesse que chorar. Depois levantar,
não se lamentar, jogar fora a auto-piedade e colocar a cabeça no lugar.
Certo de que
Deus é maravilhoso, apercebeu-se responsável por si mesmo, porque ninguém tem o direito
de chorar a vida toda. Nem quando perde um grande amor.
Ricardo
conheceu Gabriel na praia de Ipanema jogando vôlei com
amigos cariocas. Havia chegado de São Paulo a dois dias, hospedando-se num
hotel à beira-mar. Feliz por poder aproveitar as primeiras férias em
quatro anos, encontrou no Rio de Janeiro, o paraíso. Jovem advogado,
moço bonito, sem problemas financeiros, temente a Deus, era cobiçado por nove entre
dez estagiárias da Holmes & Holmes Associados: seu escritório de Direito. Sendo
que, uma delas era casada. Então essa não contava. E mesmo
se ela quisesse, não contaria mesmo, pois mulheres não eram a sua praia. E falando
nela; na praia, quando viu pela primeira vez, Gabi, — aquele deus
grego materializado mortal; esculpido num sungão branco molhado, — sentiu como
se os ossos colassem nos músculos, o coração ganhasse a Maratona de Boston; de
tão rápido que o sangue atravessava-lhe veias e artérias, e o frio no estômago, — gelando o planeta em nevascas mais que glaciais. Era o amor
batendo à porta… Quem já amou sabe o que é isso. A gente fica louco e
bobo. A gente sua. A gente queima. A gente evapora. E como acontece com todo
mundo que ama, eles começaram ali; Hades Eterno, — o amor mais
incrível que já vi. Dois homens adultos e corajosos, seguros da sua
masculinidade, decididos a viver um grande amor. Começaram portanto, a amadurecer
aquela comunhão de corpos e espíritos; que quando dá certo, — faz milagres nesse
mundo e em todos os outros: porque o sopro de Deus é sagrado, e trabalha
em nome da felicidade de nossas almas imortais; feita de espírito, carne e
osso. Mas não vou me alongar nas entrelinhas dessa relação… Todo amor verdadeiro é igualmente sagrado. Contudo
gostaria de dizer, que duas semanas depois, já estavam casados.
Gabriel (o
Gabi), jovem cardiologista de uma família de onze médicos, seguia o mesmo
destino dos avós, pais, tios e primos. A família era tão espiritualizada,
que todo e qualquer ser humano, era considerado um deles. Eram todos Doutores
no clã das Laranjeiras. Gabi era o orgulho da família. Jovem, esportista,
músico, fisiculturista, inteligente, másculo e talentoso. Era o filho que todo pai, e toda mãe,
gostariam de ter. Um homem tão encantador, que dez entre dez estagiárias de
medicina, gostariam de amá-lo por toda a vida. Acontece que mulheres não eram o seu forte. Então, como Ricardo, assumiu-se como era; com a verdade de sentimentos
que só aqueles que não devem nada a si mesmos, nem a ninguém, — são capazes
de compreender. Nascia ali, entre esse dois machos sarados, o amor maduro,
doce, real; cheio de testosterona.
Ninguém ali
estava para brincadeira. Ninguém ali cumpria o carma do esteriótipo tosco que
a sociedade tanto detesta. Eram homens que amavam homens. E foi esse saber-se
mais; esse respeitar-se no âmago; essa postura centrada e sã; esse caminhar
certo e reto; e é claro, o amor estampado nos olhos desses príncipes urbanos, — que fez com
que a família de ambos aceitasse o incontestável: Os filhos eram gays. Gays que
se amavam. Gays, que como todos nós, são filhos de Deus. Homens que amavam-se,
sim. Estavam casados, sim. E nada, nem ninguém, tiraria deles o amor
conquistado passo a passo. Coração a coração. Orgasmo a orgasmo.
Agora sabendo
do acidente na TV, penso na dor de Ricardo. Amanhã estará em todos os
jornais a história do triste acidente do Gabi, e de todas aquelas
almas ávidas por orações e preces, que desencarnaram com ele. “Tenho que
mandar rezar uma missa” — pensei. “Bom… vou ligar agora para o Rick e
oferecer os meus mais sinceros sentimentos fraternos”. Que loucura… Gabi morreu. Bem… Deus sabe o que faz. Melhor pensar assim do que dar um tiro
na cabeça… Ligar para o Ricardo… Isso. Está tocando:
— Oi,
Rick. Sou eu, Raphael. Acabei de ver na TV… Pois é… nem sei o que dizer. Eu também não estou acreditando… Bom… estou indo para aí.
Não. Faço questão de estar ao seu lado, meu amigo. Os amigos são para essas
coisas, sabe. Entendo, querido. Mas quero ficar perto de você. Chego em cinco
minutos. Segura a onda, tá?! Já estou chegando…
Até logo.
<<<
Silêncio profundo. >>>
— A vida é
assim: vão os anéis, ficam os dedos. Eu quero o Rick para mim.
FIM
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Sensacional, Betto! Meus parabéns!!!
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