SACO PLÁSTICO




“O peito do pé do pai de Pedro é preto. O peito do pé do pai de Pedro é preto. O peito do pé do pai de Pedro é preto. O peito do pé do pai de Pedro é preto”. Preto!

“Ai, ai, ai… Carrapato não tem pai!”.

Pedro sabia que quem tem o pé preto não entra em sala de branco. Pedro sabia. Por isso sempre escondia o pé debaixo da mesa para evitar constrangimento.

Pedro era magro, magrinho. Usava uns cintos tão compridos que davam voltas e voltas em sua cintura fininha. Pedro era engraçado. Vivia sorrindo desde menino. Parecia mais um boneco de ventríloquo do que um carrapato. Parecia mais uma crítica do que um elogio. Parecia defeito, medo, conversa fiada, traição. Alguns pensavam que escondia algum segredo. Outros, que fazia milagres. E uns mais mexeriqueiros, insistiam que nem carrapato ele era, já que nunca tirava os sapatos: nem quando caminhava na praia ou mergulhava no mar. E lá ia ele, todo tímido com aquele sorriso torto nos lábios, balançando os glúteos ao redor daquela cinturinha frágil, enquanto a si mesmo dizia:
 Não rebola Pedro!

Pedro era todo medo. Tinha medo de lágrima, de papel de parede, de chão, de falta de ar, de síndrome do pânico, de barata (das voadoras então… hum… medo!), de saco plástico, de maçã do amor e de algodão doce. Tinha medo de mente, de gente doente, de cebola com casca, de caixa de sapato, de amoeira, de bicho-papão, de bala goma e de samba-canção. Pedro era tão medroso, que tinha medo até de açúcar, pirulito e suspiro. E dizia que abajur não era coisa de Deus, já que iluminava, clareava, luzia,  mas não era Sol. "Sol sim é de Deus", — insistia. De Sol não tinha medo, não. Mas receio. Receio do Sol despencar das parede do céu, esbarrar nas nuvens, tropeçar na lua e cair no mar. Que medo! E de oceano… medo! De mar tinha medo! E do Triângulo das Bermudas… muito medo! A lista era enorme: medo de cachorro-quente, de xampú de morango, de ração para pássaros, de boto cor-de-rosa, de elefante-marinho, de sabão em pó, de cenoura ralada, de desenho animado, de História em Quadrinhos, de carne seca no feijão, de tijolo, de samambaia chorona, de televisão, de internet, de astronauta, de shopping, de futebol. E tinha mais: medo de telefone sem fio, de redes sociais,  dos primos, de horário de verão, de bolo de chocolate, de chiclete, de brigadeiro, de videogame, de praia, de cegonha, de Ovo de Páscoa, de indigestão, de pastor-alemão, de sabonete de glicerina, do quase e do talvez, e de biscoito de limão e perfume francês. Que maldade! Tinha medo dos discos do Frank Sinatra e das canções do Ary Barroso. Medo de vedete e de modelo de calendário de borracharia. E de carro. E de galho. E de chá de hortelã. 
Pedro, um carrapato escondido atrás do medo, enrolado na magreza com o pé de fora.

Amanhã Pedro sairá de casa e não sentirá mais medo. Amanhã Pedro entrará em casa e redescobrir-se-á. Amanhã Pedro caminhará descalço em sala de branco e olhará nos olhos dos donos da casa. Amanhã não mais precisará se esconder. E não se esconderá! Sairá triunfante pela vida, dizendo a todos e a cada um: “Não tenho mais medo de você. E nem das coisa que você tem. E nem daquilo que parece ter. Ou ser”.

Vai lá Pedro, desamarrota o seu destino! A Pedro o que é de Pedro. A preto o que é de gente. À pé a gente chega lá. Amor é o que há. Preconceito não dá. Pedro, branco, preto, pé. Ai que chulé!

Amanhã Pedro não mais passará pelo preconceito, porque os preconceituosos, vergonha de si mesmos sentirão. Pedro não mais precisará esconder o pé debaixo da mesa como se nada fosse. Pedro repousará o pé sobre a mesa, erguerá a cabeça, e sairá orgulhoso com o pé que Deus lhe deu. Pedro é trabalhador e não ladrão. Pedro é cidadão. Portanto não tem do que se envergonhar. Então viverá, trabalhará, estudará e será o melhor que puder. E não aquilo que deixarem-no ser.

Pedro compreende os insondáveis mistérios da alma humana, porque é um deles. Ninguém que não tenha o pé preto como o de Pedro, sabe o quanto o preconceito e a discriminação podem acabar com a alma de um homem. É… era horrível para Pedro saber que as pessoas olhavam-no estranho, escondendo as bolsas, mudando de calçada, fechando o vidro dos carros, por causa da cor de seu pé. É… ninguém sabe o que é ser humilhado pelo pé que tem. Ninguém sabe o que é viver estrangulado, historicamente menosprezado, sentindo-se menor, pior, inferior, amaldiçoado. Portanto, julgar não basta. Fazer alguém ter vergonha de si mesmo a ponto de se matar ou enlouquecer por isso, não basta. Amar sim, basta. Creio que haverá um tempo em que o homem compreenderá que é na diferença que se dá o encontro das almas. Nop dia em que unirmos o nosso coração, descobrimos que ninguém é melhor do que ninguém. Alguém não é pior que alguém. E o que é um pé preto no mundo, se todos resolvermos dar as mãos (pretas, brancas, amarelas, liláses, vermelhas, cinzas, roxas, azuis-turquesa…) em nome da paz e da fraternidade entre todos os seres?

Pedro compreendeu. Experimentou a vida sem preconceito. Livrou-se do medo. Cresceu. Amou. Frutificou. Viveu. Envelheceu. Desencarnou. Foi para uma das muitas moradas da Casa de Deus.  

Acordou no Céu ao lado de anjos multicores. E se encantou com o pé preto de Deus.



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Comentários

  1. Excelente. Há sempre um Pedro em qualquer parte do Mundo.

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