ALABAMA
New Orleans. Agosto de 1930.
Base militar do leste - 23:00h.
Você fala da cor da minha pele, e eu me pergunto: O que temos de tão diferente assim? Pouco me importa o modo que você vive, mas você insiste em dizer, o que devo fazer. Não me trate como escravo. É a última coisa que esperaria de alguém. Não quero lhe obrigar a me aceitar. Poupe a humilhação de ter que me explicar. Você vive arrastando correntes em direção ao passado, Gioconda. Não vou levantar bandeiras em nome da covardia. Temo aos homens do Ku Klux Klan bem mais do que a morte. Não espere que eu morra por você... Ironias à parte, modéstia às favas, sei o que digo. Enquanto você sai pelas ruas a me procurar nos guetos, sem saber onde se encontrar. Estou do seu lado todo o tempo. Não me culpe de ser como sou. Nasci assim… Ao invés disso, tente me amar. Apenas tente! Talvez assim, você perceba que eu, negro, sou absolutamente igual a você, branca. Esqueça o seu sangue azul, Gioconda! Quando aprendemos a amar, logo percebemos que é sangue vermelho que corre nas veias. Mas agora é tarde… Tenho que ir andando… Cuide-se! Nos encontraremos quando os nossos corações puderem se amar. Fico aqui com a mesma melancolia de sempre. Mas muito mais triste.
Margem do Mississipi. Agosto de 1964.
Base militar do sul. Subdivisão de controle de tráfego - 23:00h.
Gioconda, acabo de saber que você ficou viúva. Meus pêsames, carinho. Fazem mais de trinta anos que não nos escrevemos nem sequer uma linha. E mesmo assim, não deixei de te amar um só dia, nesses áridos verões do pós guerra. Soube que tens dois filhos, que trabalhas numa fábrica de alimentos, que ainda fazes aquela torta de abóbora com amido de milho que tanto admiro, e que estás só. Creio que precisas de mim para colocar-te em meu peito, afagar-te a cabeça e os sonhos, saciar-te a vida, abraçar-te tão forte, que um exército seria necessário, para me separar de ti. Perdoe-me, não quero ser deselegante, falando de amor numa hora como esta. Um homem do meu porte tem que se comportar… Mas meu amor é maior que minha educação e posição social. Agora carinho, sou general do exército. Cresci muito desde a último vez que nos vimos. Aliás, muita coisa mudou desde a década de trinta, Gioconda! Mas isso espero que vejas pessoalmente, quando eu for te visitar. Ah! meu amor! Nesses muitos anos de solidão, vivi tempos difíceis... Falo de todos os problemas que tive que enfrentar... das vezes em que me perguntava que maldição era essa de ter nascido com a pele escura. Falo de todas as respostas que tive que encontrar no meu coração. No silêncio que a vida insistia em manter... calado. Amadureci sabendo que nunca seria julgado pelo meu caráter, mas condenado pela minha cor. Só que nunca tive vocação para vítima, Gioconda. Pois até para isso, precisa-se de vocação. E tive certeza que deixaria de ser humilhado, quando fosse um respeitado oficial do exército, coberto de condecorações. A sociedade é racista, e ela tem uma dívida a resgatar com a sociedade afro-descendente, que precisa ser arregimentada para uma vida humana mais digna. Uma andorinha só, não faz verão. Mas um único homem é capaz de mudar o mundo e suas quatro estações.
Portanto, a paz só chegou a mim quando ouvi as palavras de um reverendo em Washington, no dia vinte e oito de agosto de 1963, em frente ao Lincoln Memorial. Palavras que libertaram-me a alma, Gioconda! Não mais temi as lembranças daquele passou inglório, onde os negros sulistas nem sequer podiam ir ao cinema na década de cinqüenta. Eu mesmo, um oficial do exército americano, tive que assistir a muitos filmes no balcão superior dos cinemas, vulgarmente batizado de “Paraíso Negro”. Estive em lugares como o Saenger Colored Entrence, onde haviam instalações só para negros chamadas “Separadas mais iguais” — brancos de um lado — negros de outro. Caminhei no limite da razão humana, tendo que me guiar pelas placas das estações de trem do Mississipi, com indicações do tipo: “WAITING ROOM FOR COLORED ONLY”. “SOMENTE PARA PESSOAS DE COR”. A segregação racial alcançou patamares abusivos, carinho. Porém, vivi no sul até meados dos anos sessenta. Tive que enfrentar tudo isso com o sorriso nos lábios. Minha alma escorria em lágrimas. Mas me considero um homem de sorte, Gioconda. O exército foi a salvação para essa vida manchada à ferro. Sinto mais pena dos outros do que de mim. Sinto pena daqueles que tiveram na vida civil, o mote exato para serem irracionalmente atacados. Poderia continuar escrevendo-te por semanas, contando cada detalhe desses nossos mais de trinta anos vividos, longe um do outro. Mas agora é tarde... Tenho que ir andando... Cuide-se! Nos encontraremos em breve. Agora os nossos corações podem se amar! Fico aqui com a mesma alegria de sempre. Mas muito mais feliz que antes. E para terminar, faço das palavras do pastor Martin Luther King Jr, aquelas que ouvi em Washington no ano passado, a prova do meu amor por você. É assim que desejo o nosso futuro, Gioconda:
“Eu tenho um sonho: que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos de ex-escravos e os filhos de ex-senhores de escravos possam sentar juntos à mesa da fraternidade... Eu tenho um sonho: que um dia meus quatro filhos vivam num país onde não sejam julgados pela cor de sua pele, mas pelo seu caráter... quando deixarmos que a liberdade ecoe em cada cidadezinha e em cada cabana, em todos os Estados e em todas as cidades, poderemos apressar o dia em que todos os filhos de Deus, negros e brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão se dar as mãos e cantar juntos as palavras do velho spiritual negro:
Livres finalmente! Graças a Deus Todo-Poderoso, estamos livres finalmente!”.
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Muito bom! Beijos!
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