Querido Diário,
Eu nunca me interessei por mulheres. Jamais as imaginei despidas das prisões da carne, só de calcinha, quando as observava pela janela com o binóculo melado em uma das mãos, dedos mornos na outra, sentindo calafrios na alma e borboletas no estômago. Eu nunca quis, em sã consciência, amar uma mulher.
Desde a primeira infância foi assim… Eu sentia que meu negócio era outro. Era feito um nó no peito, uma dor de quebrar os ossos, uma vontade involuntária de enfartar. Um desejo esquecido em alguma gaveta febril, que insistia em bater-me à porta, dizendo-me que eu era diferente. Mas diferente de quem? Diferente, por quê? Efemérides. Eu só sabia sentir ‘aquilo’ entre as pernas… Um fogo, um vulcão, uma vontade incontrolável de fazer amor. O tempo foi passando e fui crescendo dentro e fora das calças, criando pêlos nos lugares mais improváveis, a voz mudando, a cara afinando, as pernas espichando, e o corpo, ah… o corpo! Esse que passou por tantas transformações, e ainda continua quente, úmido, querendo aquilo que diziam ‘pecado’, comendo o fruto do meu desejo com os olhos, gemendo de tesão, amaldiçoando esse sentimento de gostar de alguém do mesmo sexo, de desejar ‘aquilo’ que tenho no meio das pernas – só que no corpo de outra pessoa — de me apaixonar pelo meu semelhante sexual, quando todos (héteros) diziam que só os opostos se atraem… E eu ali, com as roupas íntimas meladas, molhadas, estouradas, inchadas e suadas, querendo alguém, que com ou sem roupa, fosse igual a mim — só que em outro corpo, como já disse, cujas partes íntimas fossem idênticas as minhas — mesmo com alguns milímetros a mais. Ou a menos. Íntimas partes estas, gostosas, peludas, perfumadas e com reetrâncias de lamber os beiços. Ai, que tesão!
Semana passada não aguentei mais guardar esse segredo, e num rompante, querido, entrei bruscamente no quarto dos meus pais, que transavam, e vomitei em mamãe. Disse-lhe que vivia o impronunciável. Contei-lhe das dores que sentia no peito e na alma, das vezes que seduzi, e de outras, em que caí em pecadora sedução. Falei que não sabia porque gostava de pessoas com pêlos apetitosos nos mesmos lugares que os meus… Disse de uma só vez, o quanto gostava do cheiro e do gosto do lugar onde esses pêlinhos fofinhos ficavam... E que já os havia provado, não só uma vez, mas várias... Gritei-lhe que tinha me deitado e feito amor com alguém igual a mim umas dez vezes. E que havia sido a melhor experiência sensorial e carnívora da minha vida! Confissões mortas de vergonha, de quem nunca se deitou, nem pensou em se deitar, com outra pessoa do sexo oposto, porque para mim os opostos se repelem! Queria poder dizer tudo isso na terceira pessoa. Queria sentir o peso do meu igual por sobre meu sexo, lamber-lhe o corpo, lambuzar-lhe as coxas, beijar-lhe as entranhas. E depois dormir sem roupa — num ofurô banhado ao leite de cabra — qual Cleópatra. E dessa união de corpos, nasceria um amor tão grande, que apagaria a fogueira do julgo dos preconceituosos. Provando que toda forma de amor é divina, porque Deus não conhece o pecado.
Continua…
Droga! Parei para atender o telefone e agora perdi o tempo da piada. Vou tentar voltar para o meu drama… Então… mamãe após esvaziar uma cartela de calmantes “tarja preta”, anunciou-me que já sabia que eu gostava de ‘pessoas iguais’, num tom quase inquisitório, anacrônico e sarcástico de “caça às bruxas”… Papai permaceceu calado, acho que pensando: 'Da fruta que ela gosta, eu chuto até o caroço...' Sou total flex, mammy! — confessei. Para mim tanto faz álcool ou gasolina!
Estou criando monstros! E antes mesmo de mamãe abrir a boca, ditando regra, gritei-lhe:
Você quer saber se eu gosto de mulher? Adooooooooooooooro!
Engole o choro! Aqui é a vida real e não a novela das oito, mammy! Chega de melodrama! E para de me dizer que a casa é sua, mamãe! Se a casa é sua e o banheiro é seu, então enfia a cara no vaso e me deixa ser eu! Por que vocês querem se livrar de mim?! Sou sua filha única! Se eu fosse embora, com quem brigariam?!
Sinto-me tão fragilizada e derretida, que me esparramo em órgãos… mole por dentro. Eu não sou bruxa, sei que não... Mas confessaria ter voado numa vassoura se alguém me machucasse a tal ponto, e a ponto tal, quanto nessa família, onde tive a alma tão bem imolada, que até pensei em morrer. Preconceito lá fora, eu não aceito. Preconceito aqui dentro, eu só lamento. Dessa vez vocês vão ter que me engolir! Porque não sou mulher de levar desafeto na cara! Não me obriguem a decidir entre mim e minha felicidade. Sem amor, nada, nada é abençoado. Sofro de síndrome do pânico, nosofobia e agorafobia. Na minha vida, mando eu, embora sem escolhas, presa em meu lamento, nesse sofrimento, eu não mande em nada. Amor é uma questão de inteligência emocional e afetiva. Não é preciso ter um QI de cento e sessenta para se apaixonar... Basta apenas amar. Minha vida mudou desde que assisti "Acossado", de Jean-Luc Godard. Todavia paguei um alto preço ao lutar pela minha liberdade de amar. Esse aí é o mais caro... Mas é o único que eu posso pagar.
Passei anos em claro tentando me encontrar, me procurando por todos os cantos, perdida por dentro – com saudades de mim. Acabei vapor barato na intenção do dizer, e no dizer da intenção, ao sugar dos olhos ao cérebro "O retrato de Dorian Gray" de Oscar Wild.
Uma mulher quando tem tanta tristeza assim no peito, desiste da dor e do feito, nasce, cresce, reproduz, desencarna e morre.
Mas voltando… Papai, enfezado (cheio de fezes), excitado estava — excitado ficou. E antes mesmo de gozar e cair num sono profundo, expulsou-me do quarto com um “Boa Noite” tão fúnebre, que me deixou com medo de dormir pelo resto da vida.
E falando nela, na vida, ela é mesmo um conto de proporções contraditórias. Quando a gente acha que falando a verdade vai fazer alguma diferença, é que as diferenças mais se acentuam. Um paradoxo! E ser diferente é horrível mesmo… Faz de você um monstro autositário — com a alma e o coração em pedaços. Você passa metade da vida tentando convencer a si e ao outro que é normal, mesmo sendo diferente. E nem por isso; anormal. Você teme ter sentimentos, porque esses sentimentos magoariam os outros. Sente-se incapaz, com medo de ter nascido com algum parafuso a menos. Confunde atração com doença, desejo com pecado, solidão com castigo, prazer com culpa, criacionismo com evolucionismo, alegria com falta de caráter. Passa muito tempo da vida em eminência parda — tentando explicar o que sente. E não consegue convencer, nem a si nem ao outro, que não sente o que sente. Deixa-se crucificar, apedrejar, delatar… excomungar. Acredita que vive errado, lançando-se errado na obscura forma de amar errado, alguém igual a você. Mas no fundo todos não somos iguais?! Quem é que quer viver sem amor? Quem acha fácil ser amado e não poder corresponder a isso? Perder o amor é empobrecer. Para mim, como para todo mundo que ama o igual como eu, seria muito mais fácil amar o diferente — se fácil isso fosse.
Acontece que dói demais não corresponder às expectativas da sociedade. Dói demais saber que se só a beleza interior importasse, usaríamos tomografia computadorizada e não Fotoshop. Dói demais saber que ou enfiamos o “pé na jaca” e assumimos o que somos ou apodreceremos a vida toda “em paz com o mundo” – e inimigos de nós mesmos. Não quero ter que pedir permissão a ninguém para amar. Não vou pedir desculpas toda vez que disser – Eu te amo. Não vou. Eu sou sempre a amiga lésbica ou a palhaça sem graça, que no final da festa volta sozinha para casa, e enquanto tenta dormir, todos já fizeram na cama, o que só em pensar, não consigo dormir.
Esse é o jeito das mulheres da minha família... Todas nós vivemos e morremos por amor. E só tem um jeito de superar a perda de um grande amor: Johnny Walker… Black! Amo a minha mulher e todas as outras que já amei… Os meninos não me atraem em nada. Não nasci para pôr a boca no trombone! Nunca me vi como um depositório de sêmen… Sei que sou atrevida, mas estou na moda! Na escola de guerra da vida que eu estudei, a diretora era gay! Sou cem por cento feminina. O meu lado masculino é hétero! Eu gosto de mulher. Ponto. E aconteça o que acontecer, vou amar às mulheres até o último segundo de vida, porque ser ‘diferente’ não é pecado. Gosto do substantivo feminino. Gosto de sentir a pele delicada da minha namorada sob os lábios. Gosto de beijá-la com piercing na língua — flertando com Patti Smith em “Because The Night”. Gosto do formato da sua vulva loirinha, encaixando-se como uma aliança sobre a minha; quentinha. Gosto dos seus seios túrgidos, roçando em meus mamilos duros – mergulhados em chantily. Goste de ser seu doce de leite, porque ser possuída por minha mulher é doce, quente, apimentado… E me deixa molhadinha, como agora, com toda essa língua rija e invasora dentro da minha vagina monogâmica.
O que sinto por você ultrapassa o limite da amizade. Porque na vida nem tudo passa pela geometria de Euclides… Sempre fui fiel como armário de cozinha. Nunca cheguei em casa com batom na calcinha. Por isso, se ao me ler, não quiser me entender, não entenda. Mas de uma coisa você tem razão. Sou tudo isso que a vida toda falaram que eu era. Só que muito mais feliz e assumida. Porque agora não pago mais pedágio para chegar ao orgasmo. E não me chame de sapatão... Amo as mulheres, mas fanchona eu não sou. E você se engana, se acha que eu falo apenas de sexo — porque estou falando de amor. Mas isso é outra história… E já está amanhecendo, e homossexual também trabalha, paga contas, vai à igreja, constitui família e coloca comida na mesa como todo mundo. Por isso vou ficar abraçadinha de conchinha ao meu amor, até adormecer bem amada. E quando acordar, como o quadro dentro do quadro de Vermeer, ainda me lembrarei de tudo aquilo que escrevi. E você, de tudo aquilo que leu, Diário Querido.
Picassos Falsos: Quadrinhos. Hojerizah: “Tempestade em Viena”. Pausa para o café…
Sou uma mulher impressionista, recriando a visão do mundo sem preconceitos. É por isso que eu gosto tanto da vida! Ela não me diz o que fazer, só para satisfazer os seus desejos de vingança. Não é invejosa, portanto me convida a dividir nossas experiências, e aí sim, decidirmos juntas o que fazer. Não me olha torto toda vez que digo palavras chulas, porque sabe que o caminho para o amadurecimento é árduo, mas promete um lindo pôr do sol ao final. Não se preocupa com quem eu me deito, mas se alegra em saber que eu acordo feliz e amada, afinal. Não me obriga a ser o que não sou, só para corresponder as aspirações da maioria. Mas se assim o fizesse, me apoiaria, porque sabe que escolhas são para serem feitas, e que mortos ou vivos, não vivemos sem elas. Enfim, a vida não compete comigo, nem compara o meu salário com o dela, dizendo-me que eu ganharia mais – se trabalhasse mais, porque sabe me ver por dentro e por fora. E como estamos sempre juntas, inseparáveis somos uma só, unidas pelo maior afeto do mundo: O amor que agrega uma mulher a sua própria vida, como um retrato de Peter Paul Rubens.
Ontem andei de trem pela primeira vez na vida. E me senti como um frango assado à luz de velas. Nessa experiência sem adjetivos honestos, ouvi o sermão de uma missionária com encosto, que balbuciente, impunha uma árvore na mão direita, como um cajado, e uma Bíblia na outra, enquanto cantava-me a vigésima melodia do Livro Primeiro dos Salmos. E eu, uma mulher sensível do século passado, acabei frescalhota e pediônoma — numa tela de Rufino Tamayo. Quando despertei desse pesadelo sobre trilhos, cheguei a nefelibata conclusão, que era melhor ficar acordada. E voltei a dormir.
Feminina do coturno à alma. Despojada do salto agulha ao escarpan rosa choque. Verdadeira da cabeça aos pés. Sensual como amazonas no cio. Linda e forte como uma égua no pasto. Lésbica, sim. Óbvia, jamais! Não me torturo com preconceitos. Toda vez que me sinto mofada por dentro, acabo por me lembrar das palavras do Caio Fernando Abreu, que sempre me dizia:
– Se a realidade nos alimenta com lixo, a mente pode nos alimentar com flores.
E com a alma saciada; adormeço.
Soninho...
P.S.:
Amada,
Fui para o trabalho. Desculpe-me por não estar deitada a seu lado de conchinha, enchendo-te de beijinhos e carinhos, quando você acordar. Terei um dia “daqueles”, cheio de compromissos inadiáveis e reuniões capazes de mudarem a história da humanidade! Risos :)! E para completar, acabei de ficar menstruada e estou irritadíssima!
Amor, a rosa vermelha deixada em cima do meu travesseiro é para te fazer companhia e demonstrar o quanto te adoro. A noite jantaremos nuas, nos beijaremos com licor de laranja e mel de toda cor, faremos àquele amorzinho gostoso, suando com "Nosso Estranho Amor", do Caetano, e nos entregaremos aos “prazeres ingleses”. Fica com Deus e tenha um bom dia, coração. Não se esqueça que vírgulas nem sempre são pausas. E que pontos, na maioria das vezes, não são finais.
Te amo.
Sua,
Patinha.
Betto, os seus textos são tão contemporâneos, que chegam a ser atemporais. Tudo nesse blog é muito bom! Amei esse conto, Sir Betto Barquinn! Abs!!!
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