O DOCE AMARGO DO FEL




Nasci mulher. E como dizia Igreja: o lar seria o abrigo da minha alma. Poderia construir um mundo dentro daquelas paredes de pedra. Mas jamais discordar de hábitos e valores em público. Teria de falar baixo e pausado. Seguir com olhar meigo a bela missão de ser mãe. Ditavam que eu era uma privilegiada, pois além de Deus, a fêmea era o único ser vivo abençoado com o Dom da Criação. Que até as estrelas do céu, sabiam o quanto de amor há na mulher. E de igual proporção, os grãos de areia contavam-se ao léu, nos filhos da Terra paridos por nós: Mulheres. E eu, Macária, teria que fazer como minha mãe, avó, bisavó, trisavó, tetravó Passar os dias sonhando e trabalhando, como se brincasse de boneca. Assim, minha vida seria longa e justa. Casar é tudo que uma mulher precisa para provar da felicidade  mentiam-me. Mas não concordei com o que disseram Queria mais. Calar e ser escrava da submissão. Engolir o choro. Suplicar às costas dos homens  nada tinha haver comigo. Então, decidi lutar.



Queria conhecer a lua. Voar como os pássaros no céu. Ser livre como o tempo. Amar o sol e as demais estrelas  como se estivesse predestinada a ser diferente. Meu espírito fizera um tabernáculo ao redor de mim. Eu era velha, sabia?  Por dentro. Eu era velha demais Por fora. Uma mulher do tempo em que o arco-íris era em preto e branco. Já havia experimentado tantas vidas, em tantos lugares diferentes, que de onde eu vim  não tínhamos necessidade de corpo. Plainávamos; apenas. Éramos todos muito evoluídos em Júpter. Sim, eu sou de Júpter! O planeta mais adiantado do sistema solar. E agora, aqui. Presa ao ego dessa gente tola, que de tão incoerente, chega a me dar sono. Sei mais segredos sobre a vida, do que qualquer espírito engatinhando à beira do berçinho, sabe. Minha missão virou expiação... E por mais lotada de vida que esteja, destampo-me desde à alma, pois sinto-me só. Hoje, neste corpo que é meu e não me pertence, faço em mim a morada de meus vazios. Desterrada de mim, em terra estrangeira, preciso combater a demência e manter o cérebro ativo. Senão mais louca do que sã, deixo o martírio me abater. Não fui santa em nenhuma de minhas vidas. E agora milagres não me faltam, nessa vida moca de chão batido e poeira morta, a dizer-me tortas aberrações pasmadas. Luto pelo direito à conservar minha cabeça no pescoço, mesmo que para isso tenha que sucumbir ao cadafausto da loucura. Cada um só é capaz de dar aquilo que tem. De receber aquilo que doa. De emocionar-se com o que já viveu. De amar a quem lhe pertence. Cada um é o retrato da outra face, vivida na outra vida, que a memória de agora, outrora  já esqueceu. E eu só quis, imagina!, discordar de Deus.



Perdi a virgindade antes do casamento, porque um certo camponês de nome esquisito, Falácius, era o homem da minha vida. E só queria me amar. Então, construímos uma casinha simples com teto de palha,  e um rio de águas brandas para nos fazer companhia,  nos períodos de absoluta e extrema solidão. Ali passávamos lânguidos dias primaveris à contar estrelas. E eu pensava no que era ser mulher, na força interior que temos,  iguais a qualquer outra pessoa,  com direitos e deveres a serem cobrados, conquistados e cumpridos, pois éramos gente também.



Rebelei-me desde tenra idade a conceitos de normalidade. Não iria ser facilmente domada como um animal doméstico. Havia muito a saber… Dentro e fora de mim: Coisas demais para me trancar em casa e esquecer de viver, delegando aos homens o absurdo de decidirem por mim, como viver a minha própria vida. Não iria ser propriedade de ninguém Descobri o meu caminho  caminhando. Sou uma mulher vestida de flores. Ervas. Frutas. Chás-calmantes. Raízes. Incensos perfumados. Desertos. Poções mágicas. E cores. Capaz de ressuscitar aos pés de um Deus que não pune  porque sabe respeitar, amar e perdoar.



Sentia-me mais feliz na floresta do que na cidade. Por isso decidi embrenhar-me no campo de trigo e construir um lar às margens do rio. Havia encontrado o paraíso ao lado de Falácius. E ingenuamente desconhecíamos que o mal era o nosso vizinho. Espreitando-nos lentamente, feito o temor de um breve arrepio. Estava grávida e queria ficar só com o meu filho. Só e grávida  dentro de mim.  Porém o que mais desejava, era desvendar o poder místico que me assolava, arrancando-me à pele. Queimando-me a alma em brasa. Era uma feiticeira, sabia? Em mim, apenas a energia milenar acumulada, punindo-me de toda sorte de privilégios e  contradições. Horas fazendo-me amar; remoto querer. Outras, dizendo-me que o amor que em tudo reside de forma inexorável  não existe. O poder acumulado na aridez do meu tronco, pedia-me para se libertar  feito árvore seca, à expulsar frutos secos dos seus galhos secos, levando folhas secas com eles Eu não era má. E nem filha das trevas. Mas os homens da igreja não me compreenderam. E resolveram me punir por crimes  que jamais cometi.



Perseguiram-me pela floresta como se eu fosse o mal no meio deles. Acenderam tochas banhadas em azeite, na expectativa imunda, de que minh’alma subnutrida,  do mel da oliva pudesse beber. E gritaram:
Se não és como nós, acabaremos com vós! Converta-se ao materialismo espírito do mal! Ou te levaremos ao fogo sagrado, para que queimas até derradeiras cinzas, estrume humano, por toda a eternidade. E seu espírito seja liberto e voltes a ser uma mulher! Como o pastor guia a ovelha rebelde ao caminho do bem  te guiaremos até a fogueira  para que jamais esqueças que não há outro deus, senão o nosso!”.



Como a Santa Joana d’Ark, fui julgada e considerada culpada por heresia e culto ao mal. Diziam que eu era uma bruxa. E só o fogo me libertaria. E eu que jamais conheci a crueldade, fui apresentada à ela de forma rápida e recalcitrante. O que relato agora, aconteceu-me a quinhentos anos, às vésperas de dar à luz ao meu único filho:
Eu só tinha vinte anos. E por mais vidas que tenha vivido desde então, nenhuma delas foi capaz de arrancar de mim o cheiro da morte. Amarraram-me ao tronco duma árvore estéril. Um sacerdote aos brados, falava em latim, coisas que eu não podia entender: Idade Média Sentença da Inquisição Mulher destroçada Inferno Fogo. Depois acenderam tochas em volta de mim. E comecei a queimar. Muitos riam e aplaudiam. Outros urinavam-se de nervoso. Alguns jogavam pedras. Outros xingavam-me com palavrões tão humilhantes, que faziam com que o fogo, parecesse prazeroso como a brisa do mar. Havia ainda aqueles que dançavam, inebriados com a beleza da vida, esvaindo-se do meu corpo em chamas. Sem saberem que além da minha, outra vida se extinguia, festejavam enlouquecidamente.
Quando chegamos ao fim, o tempo parou. Era  o meu filho que morria — apesar de mim.



Jamais fui santa em nenhuma de minhas outras vidas. Nem nas passadas. Muito menos nas futuras. Mas agora, milagres não me faltam nessa vida toda, de céu florido e coração-infarto, à contar-me histórias que não sei contar. Nunca desconfiei da coragem de uma só mulher nesses mundos. Pois sei que sem nós  a vida apenas passaria. Nada pior do que viver num mundo atrasado como esse, onde a história não soube compreender o nosso poder: Porque era escrita por homens. Portanto calo-me agora, pois o que vivi outrora, só ao passado fez só.




Assim, a alma da mulher descobriu que não havia mais dor, porque era filha da vida eterna. Livre, seu coração viveu uma paz, que não conseguia explicar. Saiu em direção ao caminho iluminado, aonde os Bons Espíritos esperavam por ela. Bem vinda ao lar, querida! Siga sem medo”,  disseram-lhe. “Nós cuidaremos de ti.

"Eles condenaram o corpo. Mas minh’alma foi absolvida"  pensei. "Estou viva ao infinito,  Graças a Deus".



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