TE ACORDO QUANDO O ÚLTIMO GALO CANTAR







Ele caiu do cavalo com o copo na mão. Comecei a recolher os cacos espalhados no chão. Era cada um no seu canto, criando barreiras na vida. Um duelo de magos que tentei decifrar. Nosso quarto, minhas panelas, seus cd's, meu porquinho de moedas. Seu, nossos, meus, teus. Tudo que eu faço parece programa de índio. Você não. Sua cultura erudita, teses de mestrado acadêmico, escritos célebres dignos dos imortais da academia,... Eu só entendo da matemática: forno e fogão é igual a comida na mesa. Nenhum dos fatores altera o produto. Desde que eu ponha a comida na mesa do meu senhor feudal. Entendo de roupas alvas e perfumadas no varal, de licores digestivos servidos com café após as refeições, de garrafas de cristal decorado - de faxina e esfregão. Anos de violência psicológica calaram-me a alma. A humilhação física dói menos. Pior é o que não posso sentir - amor e dignidade por mim mesma. Não sinto nada.

Somente pertenço ao lar e a ti, meu senhor. O analfabetismo me condenou à escravidão doméstica. Sou uma mulher alforriada no pau-de-arara. Sim, dói. Sou como esse copo que você acabou de quebrar. Uma mulher em cacos que não quer se libertar. Você é a única vida que conheço. Apanhar é minha rotina. Todos os dias agradeço a Deus por você existir. Eu não sei porque apanho tanto, mas você com seu copo de álcool na mão – sabe porque me espanca. Muito obrigado por você existir. E ser um espancador de mulheres ignorantes e indefesas. Como dizes: Não bates; educas.

Não aguento mais apanhar. Minha carcaça putrefacta não suporta mais um aperto de mão. Não saio mais à rua com vergonha dos vizinhos. Já esgotei todas as desculpas de tombos, queimaduras e acidentes domésticos. Minha vida é um pesadelo desde que me casei com você. Sou uma prisioneira de meia idade – levando a culpa pelo seu adultério. Não somos um casal. No máximo sou o seu saco de pancadas. Seu animal doméstico. Sua vítima. Somos dois estranhos debaixo do mesmo teto. Não conseguimos dialogar sem acabarmos como hoje: Você com a mão doendo e eu com o olho roxo. Meu amor tornou-se um quebra-cabeças feito de cinzas. Em quem nos transformamos? Não me casei com o meu algoz. Não quero me divorciar de um estranho. Por isso, por favor, me ajude a salvar o nosso casamento, antes que nos sintamos frágeis demais para admitirmos que somos parte um do outro. E podes ter certeza, querido carrasco, sem você não tenho vida.

Fui criada para ouvir sempre; jamais discordar. Mas já se passaram vinte anos desde que unimos nossos pecados no altar. Não vou definhar nas suas mãos só por medo de te magoar. Minha mãe que ensinou-me a ser solidária e submissa, morreu incinerada, só e calada. Morreu órfã da vida, enquanto meu pai, casou-se três meses depois de enviuvar. Não vou terminar assim. Quero descobrir aonde está a felicidade. Deve haver um homem que possa me amar – sem humilhar-me por isso. Deve haver um modo de me salvar. Não sei como, mas vou ser feliz um dia. Quero voltar a estudar, quero fazer amigos, quero aprender a ser gente. Casei-me tão cedo, tão nova, tão pura. Casei-me com o meu grande amor. Separo-me de mim mesma, e de ti, estranho. Acabou.


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Comentários

  1. Solange Couto Vila Real7 de junho de 2010 às 09:30

    Só vc poderia escrever essa preciosidade sobre este homem, que a exemplo do Cristo, pregou a paz e o amor entre os homens. Suecesso, meu anjo. Beijo!

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