PETECA




Ela havia sido vítima de inúmeros estupros morais ao longo da vida. E não sabia se havia se exposto à berlinda do acaso ou se o sucateamento dos sentimentos humanos era o verdadeiro culpado de a sua carne negra ter sido rasgada à canivetes. Por anos manteve-se em silêncio, incapaz de transpor o abismo e o buraco negro que separava-a dos homens por quem se apaixonara. No âmago sabia que pênis era a última coisa que queria dentro de si. Afinal, sua alma havia sido tocada e penetrada tantas vezes, que era mais do que justo ter o pé atrás com os homens. Assim, mareada de si mesma, percorria taciturnamente a passarela do inconsciente, como um animal selvagem avesso a gente.

Primeiro o pai. Depois os cinco irmãos. E por fim, o avô. Todos a haviam decepcionado tanto, que na porta do seu quarto colocara uma placa enorme, que dizia: Men go out!

Acontece que ela era mais uma vítima de cretinos machistas, que julgando-se acima do bem e do mal, exalavam testosterona e feromônio sem critério algum, invadindo a privacidade feminina a socos e pontapés. “¡No hay perdón!” — pensou. ¡Verdade… no hay— concluiu.

Sendo assim, ela cresceu traumatizada. Tremia da cabeça aos pés. Sentia calafrios na espinha. E na boca do estômago, dor. Quando recordava o cheiro, o suor, a barba por fazer, o hálito quente na nuca, os gemidos luxuriantes, as lambidas no bico do peito, os chupões no pescoço, os tapinhas no bumbum e as coxas lubrificadas por orgasmo barato, ondeava. Por isso ficara só, perdida no vazio de si mesma, como o Minotauro perdido no próprio labirinto. Ela era um ser encarcerado numa prisão sem grades.

Mas um dia decidiu procurar ajuda. Entrou para um grupo de estudo e descoberta da sexualidade, dialogou sobre o que define o sexo biológico de uma pessoa, perquiriu sobre identidade de gênero e orientação sexual, fez psicanálise, aprendeu a jogar peteca e a se masturbar à frente do espelho. Senhora da própria sexualidade, aprendeu a gozar consigo mesma. Assim sendo, convenceu-se de que não tinha culpa de ter sido usada por tantos homens, seviciada por parentes e machucada no corpo e na alma. Amava o gênero masculino, mas o que representava, ela não gostava. Dizia que os homens eram animais de carne sarada: músculos imensos, voz grave, coxas grossas, peitoral definido, abdômen tanquinho, lábios quentes e nervo rijo. Sim, ela amava os homens. Era um mulher acostumada a queimar-se com o próprio fogo.  


Há cinco minutos ela percebeu que livrou-se do trauma de uma vida. Descobriu que o Guaraná Jesus é cor de rosa; provou, gostou, conheceu o amor e casou-se com sua psicanalista. Circula à boca pequena, que formalizaram no civil e no religioso, o que há tempos faziam no divã: amor. Verdade ou mentira, não importa. Elas julgaram que seriam felizes para sempre. E foram. 


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Comentários

  1. Luiz Paulo Marcondes Ferraz18 de abril de 2011 às 15:30

    Betto, você tem toque de Midas. Tudo o que você toca vira ouro!!! Me amarro nos seus textos, cara. Muito bom!

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  2. Muito bom, Betto. Muito bom!

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