NÃO É PRECISO USAR SAPATOS QUANDO SE CAMINHA SOZINHO

Sou a arte em palavras dentro de um livro. Fiz-me de cego para poder caminhar no escuro. Tropecei em todos os obstáculos que encontrei pela frente. Pelos lados. Pelas costas. Tateei por paredes podres tomadas por cupins. Rastejei por caminhos lamacentos. Escondi-me do sol para não poder enxergar a luz do dia. Isolei-me numa caverna existencial, onde morcegos carnívoros voavam em paz, em meio a frutos decompostos espalhados sobre o lodo, empossado pelos cantos. Raspei até o fundo do prato para sentir o amargo sabor da fome. Daria as duas mãos por um pouco de comida estragada. Podre. Infeta. As fezes de algum animal amontoavam-se ao redor, – tonteando-me a mente. Fazendo com que os restos de carne fétida, que ainda estavam no meu estômago, se esvaíssem em múltiplas golfadas de vômito. Inundando o ar de um azedo infindável. Deixando na boca, – o sabor de uma gosma ácida e pastosa.

Bebia da água da nascente mais próxima, onde insetos e criaturas sem cor deslizavam asperamente sobre meu corpo imundo. Adorava comer terra. Sentir o gosto do barro petrificado, esfarelando os lábios. Nunca fui tão miserável e tão feliz. Cuspia no chão e provava a mesclagem: Saliva e desejos. Defecava em círculos criando esculturas surrealistas: Pequenos monstros depressivos em montes artesanais. Fui até o fundo do poço e cavei mais fundo ainda, para ver o quanto de prazer sentiria em ser desprezível. Convivi durante muito tempo no meio de porcos, sabe? O absurdo me completa. Por isso, continuo aqui, caçando ratos para comer no jantar. No meio do lixo. Não sendo nada. Apenas descendo até não poder mais... E ser obrigado a parar.

PS: Quando encontraram-me morto, na minha lápide estava escrito: "Não leve a vida tão a sério. Porque ninguém sai vivo dela".

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