DIAS DE SONHO NO HOTEL EXISTÊNCIA




Eu tinha oito anos à primeira vez que caminhei sobre as brasas. O Mestre ensinou-me a não temer: e não me queimei. Assim começa a minha história... Um menino negro com urgências morais latentes. Buscando o seu Dom. Conquistando o destino. E indo além do Chamado.

Cresci no Brooklyn. Menino negro do Brooklyn. Aprendendo a dividir tudo. Inclusive amor. Cresci em North 6 Street, Brooklyn, NY, USA. Lugar que chamo carinhosamente de “Rua Seis”. O bairro negro de New York. Éramos todos como irmãos E os brancos passavam desapercebidos em nossas mentes. Não estavam lá Engraçado, convivia tão pouco com brancos, que pensava duas vezes, para poder confiar-lhes a atenção. Não era sequitarismo. Simplesmente éramos negros demais e não sabíamos muito sobre os brancos. E eles assistiam assépticos à nossa presença. Mas um pouco mais do que nós.

Eu era muito pequeno quando os meus pais deixaram o Brasil e mudaram-se para New York. Na infância, não lembrava-me muito de como eram as coisas por aqui. Não vicejava brasilidade, embora brasileiro fosse. Meus pais falavam de suas memórias, alegrias e angústias, das saudades do feijão com arroz, da pátria amada e dos sonhos que não puderam realizar. Deixaram-os de lado. E amadureceram na América do Norte.

Naquela época da minha infância, o Brooklyn era repleto de salões, cafés e casas de chá. Aonde se fosse, podia-se ouvir o bom e velho jazz a nos encantar os ouvidos. Havia um pequeno bar na Rua Seis  The Greenwich Village Bar  que impressionava com blues antológicos. A essência da arte morava no meu bairro. Negros altos, corpulentos e alegres, cantarolavam suas composições pelas ruas  e incendiavam-nos com seu som.

Eu brincava com os filhos dos empregados de papai, que tinha uma lavanderia. E tornei-me amigo de seus amigos. Andava sorridente pelas largas calçadas do bairro, dançando junto dos paralelepípedos, e espiando paradoxalmente, a alma de cada casa. Cada uma de uma cor, formando um mosaico heterônimo. Não havia nada igual E todos os célebres cantores de blues e jazz da época eram amigos dos meus amigos. E tornei-me amigo deles também. Todos queriam saber coisas sobre o Brasil. E eu ficava fragmentado a dissecar as histórias que ouvia dos meus pais. Falava da praia de Copacabana, da beleza do Corcovado, de poesias marginais, como se falasse de mim mesmo. Discursava sobre lugares que não conhecia. Mas sentia-me fascinado. Era insólito deixar que pensassem que conhecia.

Na Rua Seis nada era tão seu que não pudesse pertencer a todos. Não sabíamos o que era a ilusão. Portanto nos permitíamos sonhar. Cair do mais alto possível e não ter medo de se machucar. Éramos os negros da rua mais negra de New York. Sabíamos ser especiais.

O Hotel Existência foi o lugar que marcou a minha vida. Recordações que vão acompanhar-me para sempre. Lembrança dos bailes à noite após a escola, do New York Methodist Hospital, das aulas de violino no Berkeley Carroll School, dos cultos evangélicos na Greenwood Baptist Church, e da fascinação que sentia por aprender a tocar saxofone. E ser o maior saxofonista da América! Saudades dos meus amigos, e de todos os seus amigos, que tornaram-se meus. Da minha primeira namorada e dos beijos que não cheguei a dar. Mas que foram esperados e desejados. Vontade de rever a Rua Seis e as luzes azuis do Brooklyn nos dias de natal, com toda aquela neve ao redor De poder agradecer aos céus de New York por tudo que não vivemos juntos. Mas que marcou-me eternamente. Tudo era importante. E fora importante. Os velhos a contar histórias eram importantes. E ser criança naquela época também o era. Por isso sou quem sou hoje, uma pessoa feliz e de bem com a vida.

A maior lição que aprendi tendo morado tantos anos na América do Norte, foi de aprender a amar o Brasil. E a fechar os olhos e ver todos ali – a enfeitar-me o pensamento. Fazer-me recordar o jazz, o soul, o blues, o gospel, de uma New York que ficou no passado, na memória, na alma e no amor, dos meus amigos.



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Comentários

  1. Cristina Gajeros Puentes18 de abril de 2011 às 17:09

    Encantador, Betto! Excelente texto, gato! New York! New York! Amei!

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