A MULHER DO CORAÇÃO DE VIDRO





Eu quero comprar uma portinha só minha - ela disse. Com duas janelinhas azuis, um telhadinho de cristal e quatro paredes transparentes. Não quero mais nada. Só minha portinha e você.
Quero um amor que seja uma colagem musical barroca, uma fusão do clássico com o lounge moderno. Seu olhar contemporâneo nos meus olhos primitivos.
Deixe com que os vivos cativem os vivos - disse ela, ouvindo "Bad Day" do REM. Que os mortos abstraiam os demais. Que o nosso amor seja léxico - feito áqua de flor de laranjeira. E que estejamos juntos no fim da comédia. Absolutamente romântica e sem noção. Praticamente uma bomba.

Macabéia vive na terra do sol e não gosta de praia. Ama São Paulo, e diz que ter nascido no Rio, foi um erro geográfico que tratou de concertar, assim que parou de engatinhar. Foi correndo viver na terra da garoa - para descobrir o que Maria leva. Foi tão rápido quanto um flash. Esqueceu pai, mãe e irmãos para trás. E só percebeu que ficaram, vinte anos depois, quando estavam todos perdidos mundo a fora. Uma família de retirantes do caus, não pode parar. Assim, desapareceram do mapa. Macabéia salvou a própria vida por pura teimosia - sendo libertada por total egoísmo. Nascida na periferia de uma cidade, entre o mar e a montanha do terceiro mundo. Vivendo no país do preconceito e da desiqualdade racial, segundo dados oficiais da ONU, Macabéia sentia isso em tom grave. Grave demais para sorrir. Não achava a menor graça na miséria humana. Não entendia como algumas pessoas só conseguiam ser felizes, quando viam os outros sofrendo a seu lado. Macabéia não vivia num perdão merecido. Porém mais uma vez, via-se sobrevivente da própria teimosia. Só tinha a si mesma. Não iria morrer de graça - pensava. Macabéia era uma mulher de luto. Embora usasse roupas tão coloridas e rosadas, que parecia que vivia em constante primavera. Mulher de muitos invernos e poucos verões. Assim era Macabéia. Tão bem conservada que era praticamente uma virgem.

A menina de pés de vento, dizia que era mentira, que o homem na lua pisara. Para ela, tudo era efeito de computação gráfica. Com uma câmera superpoderosa, coloco o homem até em Marte - dizia.
Macabéia era uma mulher da pré-história underground. Jogou o próprio coração fora, e comprou um novo num antiquário da Lavradio.
Ela hoje mora no Rio, e embora não goste de praia, adora pedalar com sua montain bike ao pôr do sol. E fica impressionada com a beleza da cidade cartão-postal, dos outros.
Certa feita, suas mãos descobriram dedos, e resolveram dar-lhes anéis. Usava lentes de contato como um segredo para a miopia. Se usasse óculos, esmagaria a visão, com olhos fundo de garrafa. Mas não revelava que era quase cega à ninguém. E dizia a todos, que o seu melhor dom, era ter a visão perfeita - mesmo sendo cega como uma porta. Ingênua que só ela. Praticamente um feto.

Era uma feminista incomum. Dizia que uma mulher pós-diluviana, tinha que ser boa de cama. Abominava pré-conceitos. Acreditava em pós-conceitos. Se importava mais com que as pessoas sentiam, do que com que achavam. Achismos são descartáveis - poetizava. Sentimentos, não! Uma mulher que atiça seu homem com fogo, ou sua fêmea com volúpia em forma de chamas, é capaz de colocar o mundo a seus pés. Sabia ordenar como ninguém, e ainda ser passivamente doméstica, entendendo tudo de "nouvele cousine". Detestava nostalgia, perdendo a memória em segundos. Saudade é coisa do passado. Vivo o presente hoje e o futuro amanhã - bradava. Com seu jeito imperativo, ela era um sargento com tantas patentes, que se somadas, fariam dela um coronel reformado; gritando: Viva Zapata!
Bisexual de carteirinha, fazia amor com mulheres e sexo com homens. Tinha a volúpia na ponta da língua. E o sexo no meio das pernas. Uma mulher sem clitóris, sem orgasmo, sem prazer. Masturbando a alma com a ponta dos dedos - em orgias anais. Tinha o coração vasto até o céu da boca. Uma solidão absurda até os dentes. A emoção com osteosporose - esfarelando os ossos. Uma lordose n'alma e uma escoliose moral e cívica. Preferindo viver a margem da sociedade à tornar-se o centro da própria. Não tinha vocação para vítima. Então, ao invés de apanhar, era a primeira a bater.
Ilustre provocadora, dizia não acreditar em pessoas que usavam máscaras. Para entrar em sua vida, tinha de ser nú de corpo e alma. Caso contrário, a porta da rua era a serventia da cara.
Mulher de muitas facetas, e personalidade única. Praticamente um Froid de mini-saias.

Se o romance fosse o desejo de quem beija, que seria dos que olham?! Assim era Macabéia. Uma mulher cheia de frases, com glossário próprio, e sem falsas modéstias. Uma mulher movida por "The voice within", da Cristina Aguilera.
Dizia que a loucura quando ama, encara até eletrochoque. Queria alguém para ser sua estrela do mar. Alguém que lhe oferecesse casa, comida e alma lavada. Alguém tudo_de_bom.com.br - só isso.
Ela precisava vender o seu peixe - não sua alma. Via beleza na paisagem humana. E dizia que viver, era uma experiência altamente qualificada. O lúdico era seu melhor amigo, e dizia que brincando, aprendeu a viver em grupo. Adorava ações sociais, capazes de beneficiar pessoas, posicionando-se como gênero reflexivo da cultura. Seu ideal era que todos fossem alfabetizados e felizes. Assim, haveria igualdade no mundo. Era quase socialista. Praticamente um Lênim de fio dental.

Macabéia pregava a diversidade sexual. Gostava de sexo animal e selvagem. E dizia que "papai e mamãe", só se fosse num "menage a trois" - à quatro. Na vida, o que importa é o amor - dicertava. E não com quem você faz sexo. Orgasmo é um prazer só seu. Os outros que aprendam a gozar sozinhos. Dizia que o que fazia na cama, ia junto com a fumaça do cigarro. Dela mesma, não revelava nada. Nem para o ginecologista, nem para o terapeuta. Muito menos para o padre confessor. O que fazia na cama, para ela - era sagrado.
Sua santíssima trindade era:
Amor, solidariedade e respeito. Nisso resumia-se a sua fé.
Da vida cobrava caro. Dizia não ter nascido para viver de esmolas. Gostava de luxo. Dizia que a melhor vista, é aquela contemplada da cobertura de um quadriplex no Leblon. O primeiro andar junto ao térreo - dava-lhe vertigem. Macabéia não descia degraus. Subia escadas. No máximo, ia de elevador em direção ao topo. Preferia chorar numa lumisine conversível, do que gargalhar com a dentadura à mostra num ônibus lotado de banguelas. Não gostava de frases feitas em clichês. Dizia que um pouco de criatividade não fazia mal a ninguém. Jamais dizia adeus - falava até logo. Quando fechava as pernas ou à porta, não abria nem por um decreto.
Sua vida metrosexual era um mito. Não transava em praça pública de graça. Sua vida íntima não era um filme pornô. Dizia:
Detesto que se metam entre mim e meus pertences. Não divido meus afetos com quem me detesta em desalinho. Tem gente que só valoriza o que tem quando vê na cama com outros. Não levo desaforo para cama. Muito menos para casa - confessava.
Detestava homem objeto. Não iria para cama com nenhuma peça de decoração. Sexo para ela - só com camisinha de morango. Caso contrário, preferia assistir a novela das seis. Sozinha. Nua em sua Romi-Isetta.
Quando lhe perguntavam sobre sexo oral, dizia:
Por via oral só o básico. Minha boca não é meu órgão sexual.
Macabéia era assim. Feito pornográficas samambaias de plástico, cultivadas em estufa por um voyeur. Praticamente uma doida, varrida para debaixo do tapete.

Macabéia namorava tanto, que não passava um dia sem dar beijos na boca. Era uma mulher alternativa. E não uma alternativa de mulher. Dizia que alguém para conquistá-la - homem ou mulher - tinha que ter cérebro. Mediante a quantidade útil de neurôneos do indivíduo -ela decidia se via ou não seus bagos.
Quando convidada à sair, dizia:
Não me convide para um drink após o cinema. Sou alcólatra, mas não bebo. Dizia:
Estou mais para sacarina sódica e ciclamato de sódio - do que para aspartame.
Detestava acordar cedo. Para ela, o dia deveria começar ao meio dia e acabar às seis da manhã. Se alguém era blazê, cantando em falsete, poderia esquecê-la. Esse tipo de gente lhe dava fome. E na sua idade, a única coisa que queria engordar era o bolso. Por isso - para emagrecer, fez dieta alimentar, parando de andar com chatos. Parou de fumar - quando descobriu que o cigarro a deixava mais calma. Detestava calmantes! Adrenalina era seu mote e seu charme. Na vida não suportava três coisas:
Pessoas de alma obesa. Conversar com alguém sem nada na cabeça. E apaixonar-se com o coração vazio. Detestava quem a olhava como carne no espeto. Não se apaixonaria por ninguém, que confundisse mulher com churrasco. Preferia lamber carvão!
Macabéia não queria ter filhos. Adorava crianças, mas na casa dos outros. Na dela, só se fossem empalhadas ou de pelúcia!
Dizia que ainda seria virgem, se não tivesse começado sua vida sexual na primeira infância. Concluiu isso aos nove anos de idade. Precoce até no sobrenome. Mas há controvérsias nessa versão. Afinal, menor de dezoito anos, não dá!
Macabéia era Léia, até o nome mudar. Detestava rótulos. E não admitia ser colocada na prateleira - feito sacos de batata.
Dizia que a melhor invensão do homem era a gelatina. Ela é leve, não engorda, é colorida, transparente, fácil de fazer - fica deliciosa com creme de leite. E ainda decora de bom humor a geladeira.
Macabéia não era ninguém, sem cartão de crédito. Só confiava em quem pagava suas contas. Discordava com quem dizia, que ela não valia nada. Falava que todo mundo tinha seu preço. E que o dela era em euros!
Macabéia só se casaria na igreja de véu e grinalda, se fosse por amor. Mesmo assim, teriam que pagar muito caro por isso. Não tinha reservas quando o assunto era dinheiro. Economizava o dela, gastando o dos outros. E não apaixonava-se por ninguém, com a conta bancária menor que a dela. Seu maior sonho era viver num paraíso fiscal. Passaria os dias num cofre de banco. E moraria num carro forte.
Não comia nada que levasse fermento. Nem transava com quem usasse prótese no pênis. Não era mulher de viagra. Mas de crescimento voluntário.
Em sua casa não tinha forno à gáz nem fogão à lenha. Depois que apresentaram-na ao microondas - foi amor à primeira vista.
Não comemorava datas - nem do próprio aniversário. Deixava isso para os emotivos de plantão. Macabéia era quase uma insensível. Praticamente uma pedra de gelo - exposta ao sol.

Depois dela, não amou a mais ninguém. Dizia que não colocaria a mão no fogo nem por ela, nem por outrem. Detestaria se queimar!
Só ouvia MPB. Música para ela - era só no idioma materno. Adorava homens emotivos, cafagestes e durões. Dizia que homem que é homem - não chora. Abre logo o berreiro! E mais:
Homem que bate em mulher é um covarde. Mulher que bate em homem - é sado-masoquista. Assim era Macabéia. Uma mulher quebra-cabeça, desmontada até a alma. Aprendeu cedo que a vida era dura. Descobriu tarde, que na vida, nada é um erro geográfico. E que quanto mais se corre dos problemas, mais rápido eles nos alcançam. Porque nada fica parado. É mais fácil se julgar, do que ser julgado. O mundo não é uma questão de física. Jogue no lixo a sua inércia - bradava, olhando-se nua num espelho em cacos.

Macabéia conseguiu comprar uma portinha só dela, com duas janelinhas azuis, um telhadinho de cristal. E quatro paredes transparentes.
A mulher de coração de vidro descobriu enfim o amor. Parou de gritar verdades em sandices. E decidiu desenvolver-se. Evoluir-se por si própria. Não queria mais nada. Só a portinha e a mim.
Queria um amor que fosse uma colagem musical barroca, uma fusão do clássico com o lounge moderno. E meu olhar contemporâneo nos seus olhos primitivos. Deixe com que os vivos cativem os vivos - ela disse. Que os mortos abstraiam os demais. Que o nosso amor seja lexico, feito áqua de flor de laranjeira. E que estejamos juntos no fim da tragédia. Absolutamente românticos e sem noção. Praticamente duas bombas-caseiras.

Você pode até não entender o que se passa em seu coração. Mas isso não te dá o direito de julgar à Macabéia. Porque frágeis, somos todos nós.

A única mulher que amei na vida, foi Macabéia, que fragilizou-me à alma, com um coração de vidro.



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Comentários

  1. Lourdes Maria da Rocha13 de junho de 2010 às 08:29

    Que linda a história de Macabéia. Vc coloca em seus personagens tantos sentimentos, que é impossível não se emocionar com tanta vitalidade. Seu texto tem movimento. Tem cor. Tem som. Fala por si só. Lendo esse conto, pude fechar os olhos e imaginar cada cena retratada aqui. Seu texto aguça a imaginação da gente. Esse blog é uma delícia, Barquinn. ADOREI!

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