ESTÁ TUDO ACABADO ENTRE NÓS




Achei um vira-lata na rua, e fui correndo para casa com o meu achado no colo, mostrar para aquele monte de pelos que ele merecia ter a mim como lar. Fubá é lindo. Tem o focinho longo, caninos à mostra, patas fortes de corredor, um ar de cão de raça com pedigrée mesclando chocolate-marfim ao manto branco, latido altivo, andar gingado e rebolativo, olhos azuis-turquesa, e uma cara-de-pau irresistível.


Fubá é agridoce e sujo de lama. Faz umas caras engraçadíssimas. Quando corre para todos os lados como um celerado; sobe no sofá, deita na minha cama todo molhado e come de tudo. Ineducável! Fubá come de sandália de borracha a cinto de couro. Come de ração canina à filé com fritas. Come, come e come. E come tanto que sairia mais barato sustentar um elefante à pão de ló do que este hóspede ilustre, esfomeado e destruidor; mas extremamente amado, que convidei à entrar em minha vida e em meu coração, definitivamente.



Com a chegada de Fubá minha vida mudou. Descobri em mim uma responsabilidade paternal; que pasmem, eu nem sabia que tinha. No início a rotina virou um pesadelo. Era um tal de acordar cedo para limpar a bagunça de Fubá Lembro-me como se fosse hoje, da primeira vez que ralhei com ele, fazendo alvoroço e pontuando minha indignação; tentando mostrar-lhe que era eu quem mandava na casa: e não ele. Irado com todos àqueles cocos e xixis espalhados pelos cômodos, peguei umas folhas de jornal, enrolei-as e bati com tanta força no chão, que até eu mesmo fiquei com medo de mim. O que Fubá havia feito? Ah, moleque! A lista era enorme: comeu o fio do telefone, roeu a porta da geladeira, destruiu minha conexão de internet, rasgou o meu tapete persa, aniquilou minha coleção de postais da Suíça, levou aos cacos meu vaso de porcelana chinesa, estraçalhou o pedal do meu piano, quebrou meu jarro de cristal finlandês; que me custou os olhos da cara, sumiu com meus sapatos italianos, usurpou minhas gravatas francesas; acabou com toda uma vida pacata, dócil, equilibrada, e ainda revirou o lixo, comeu os botões do meu paletó inglês e a capa de todos os meus livros de filosofia. E achando isso tudo muito pouco, comeu o meu salmão ao curry; que na correria, esqueci em cima da pia: e adeus. E é claro, depois da merda que fez; ficou todo manhoso, olhando para mim com aquela cara de “não fui eu, papai”: dando a patinha, e a outra, e a outra. Fiquei muito bravo naquele dia. Brigamos. Depois fiquei com remorso, afinal a casa também é dele. Ele ficou triste. Tristíssimo. Macambúzio. Escabreado. Não demorou mais que dois minutos para que fizéssemos às pazes; devorando meio pote de sorvete de chocolate juntos!



Fora a bagunça inarrável que veio de brinde agregada à Fubá, a nossa vida era um paraíso. Caminhávamos no parque todas as manhãs, jogávamos futebol de salão como se fôssemos gente grande, paquerávamos as gatinhas na orla, ficávamos sarados a passos largos; o que para nós, ex-gordinhos comilões, era uma dádiva dos polivitamínicos pós-modernos. E se virássemos Mr. Universo, quem ligaria?! Com nossos novos corpos de halterofilista, o nosso charme ainda era o maior amigo do homem. E do cão do homem! Nesse ritmo frenético, terminamos nossas manhãs tomando sol com água de coco. Assim ampliamos a nossa capacidade de amarmo-nos sem culpa, exercendo um fascínio tão grande um pelo outro; só visto nos grandes amantes do cinema francês ou na relação pais e filhos. 




Eu amo Fubá. Amo quando ele me acorda com a coleira na boca, convidando-me para o nosso passeio matinal. Amo quando o “Fubazinho do Papai” passa a tarde inteira deitado aos meus pés enquanto leio em voz alta “A República”, de Platão. Ele parece entender tudo sobre Filosofia. Entende bem mais que eu. Ele presta atenção em cada palavra do livro, enquanto coça as orelhas e brinca com suas pulgas de estimação. Juntos escrevemos meu primeiro livro. Juntos amadurecemos a forma do pensamento coletivo-contemporâneo. Juntos extraímos de nós o ser racional que nos habita numa caverna sensorial e silenciosa. Juntos deleitamo-nos em nossas intermináveis conversas sobre a vida e suas complexidades. E aquela velha saia justa mal passada de sempre: Quem somos?! De onde viemos?! Para onde vamos?! Por que meu pênis é trinta centímetros acima da média?!


Existem mil maneiras de amar os livros. Como no Kama Sutra para o sexo, eu vou para cama com todos. Veja só eu, um intelectual de porta de biblioteca, dissertando sobre Filosofia aplicada ao cotidiano, a religião nos tempos do cólera, a implosão emocional e a depressão humana, o estado contemplativo da alma, o êxodo sentimental que ofusca a liberdade do Ser, a pasteurização do cidadão comum, o bem e o mal na terra brasilis, e a Arte como forma de expressão das sociedades marginalizadas; enquanto "Fubazinho do Papai" me observava fazendo charminho, com o espírito, o coração e os olhos rasos d’água, dizendo: "Quero teu colo Estou precisando de carinho Leve-me à Chaika, e me pague uma pizza, panaca!".  


Os dias que precederam a chegada de Fubá foram tão mágicos, tão soberanos e gentis, que revendo o filmeco em preto e branco da minha vida, chego a conclusão de que entre o amor e o nada; prefiro o amor. E a dor. E a insegurança. E o medo. E a saudade. E a alegria. E o desejo. E a alucinação de uma febre terçã. Porque são alvos voláteis, impalpáveis, áridos e meros móbiles do acaso. Mas fazem parte de mim. Existem. E não são o nada. Filosofei!


Um dia desses caminhávamos pelo Posto 9, eu; sorridente, e Fubá; absorvente. Éramos os bonitões mais bem dotados do pedaço. Ele, o terror das cachorras. Eu, o "bendito é o fruto entre as mulheres". Em um segundo de distração, Fubá escapuliu da corrente, sumindo entre os banhistas e salva-vidas sem nem olhar para trás, como se eu fosse o cachorro; e ele, o dono de mim. Panfletário que só, largou-me na mesma calçada onde o encontrara. "Fubazinho escafedeu-se",  pensei. Exibido que só, Fubá saiu desfilando pelo calçadão e abanando o rabo, como se dissesse: "Está tudo acabado entre nós". 

Aquele foi o dia mais triste da minha vida. Minha biografia sem Fubá seria um desastre. Mas como milagres acontecem na vida daqueles que acreditam em milagres; quando cheguei em casa quem estava lá? Fubá!


Na foto: Meu cachorro vira-lata, Bebeinho, que inspirou-me a escrever este conto.





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