MENINA VENENO




Por que não se mata, querido? Por que não se suicida, amor meu? "Medo". "Simplesmente por medo" — respondeu-lhe o marido com os olhos cheios de sangue. Salmonela era uma mulher esquisita. Só falava em morte. Só via morte. Em tudo a morte punha. Fazia da vida do marido um inferno, deixando-o inseguro o tempo todo, preparando-lhe armadilhas sutis, envenenando sua comida, fazendo roleta russa com AR-15, andando com traficantes, e transando com todos os seus inimigos, que como ela, só queriam o seu mal. Uma vida ociosa, terrorista, escalafobética, inanimada e fatal. E o que ele fazia? Nada. Karpathos era um homem pacato, doce, paternal. Tinha os olhos tão claros, mergulhados num lago azul, que de azul tão azul, mais parecia um menino angelical. Tinha a magia de uma luz que ilumina um quarto escuro. Era amado por todos. Admirado por todos. Enfim, um homem bom. E mais: Amava Salmonela. Não queria magoá-la por nada desse mundo. Por ela era capaz de tudo. Até de matar-se. O que importava para ele era viver. Contraditório, é verdade, mas era esse mesmo o seu sonho: Viver. Desejava envelhecer com a mulher de sua vida, trabalhar, ter filhos, ser feliz. Como homem de bem que era, não tinha grandes ambições fora da família. Gostava de conforto, de luxo, de viagens caras, de patrocinar momentos agradáveis para si e para outrem. Gostava de ter a casa cheia, de ter os amigos adorados por perto, de aglutinar amores, de juntar pessoas num mesmo teto, de afagar vidas em volta da mesa, de doar-se diariamente. Só não percebia que a mulher dos seus sonhos era fúnebre demais. Uma mulher obcecada em matar o marido, só para sentir nele o gosto da morte. Mas o que fazer? — pensava… Nada. Era feliz ao lado dela e não queria mudar… E quando indagado pelos amigos sobre sua relação com uma homicida em potencial, perguntava-os em tom brincadeira: O que esperar de uma mulher com nome de bactéria? A morte, é claro! E todos riam compulsivamente. Riam mais de medo do que de prazer. Dava para ouvir as gargalhadas de pavor, ecoarem a mais de dois quarteirões dali. E cúmplices, davam-lhe tapinhas nas costas, bradando: "Esse Karpathos, que pândego!".


Salmonela era estudante de cinema numa faculdade pública. E queria ser cineasta. Era vidrada em filmes antigos. E quando solteira, investia todo o seu miudo dinheiro, em horas cerrada na sala escuro da sétima arte. Fez de tudo na vida. Foi manicura para pagar as aulas de inglês. Garçonete para quitar as prestações da primeira moto. Traficou drogas para pagar uma viagem a Nova York. Vendeu seguros e bilhetes de loteria para passar um final de semana em Cancun. Trabalhou dois anos como garota de programa para financiar seu quitinete no Méier. E largou tudo, quando conheceu na boate “Love Time on See” em Copacabana, aonde trabalhava como agenciadora de menores, o rico e encantador Karpathos, o homem de sua vida. Disse-lhe de cara que ele tinha um bumbum lindo. Mais lindo ainda, porque ficava perto da carteira recheada de dólares e cartões de crédito internacionais. Atestou-lhe que quem fala a verdade, não merece castigo. E tamanha sinceridade, deixou-o encantado! Assim, começaram ali mesmo, no banheiro dos homens da boate, um tórrido romance. Tão tórrido, que foram presos naquela mesma noite, por atentado grave ao pudor e ato libidinoso e obsceno, no reservado público. Riram bastante da confusão no camburão. Deram tantas gargalhadas, que os policias riram também com tamanha pilantragem e falta de vergonha na cara. Dois jovens lindos, apaixonados, infratores, fatais. Ela, uma jovem prostituta, que já fora garçonete, traficante, cafetina, corruptora de menores, vendedora de seguros e manicura. E que agora, estudava cinema. Ele, um jovem rico, da alta aristocracia carioca, herdeiro de um império babilônico, que nunca trabalhara a não ser para si mesmo. E que agora estava apaixonado por uma mulher especial. O amor nos traz tantos presentes na vida, que não devemos deixá-los imperceptíveis — pensou. Portanto, vou agarrar-me a sorte pelos cotovelos, e deixar a vida seguir o seu curso — afirmou. Ela também estava contente… Se ele não fosse seu amado amante, daria um golpe nele assim mesmo, deixando o “pato” depenado. Se fosse o seu eterno amor, então seriam felizes juntos. Ou separados. E se ele morresse, ficaria rica com o golpe do baú… Pensou em tudo. Pensou em nada. Queria se dar bem a qualquer custo. E sabia que talvez a sorte não batesse em sua porta de novo. Afinal até hoje, a única coisa que batera à sua porta, e que voltara de novo, era o azar. Agora tinha ali um otário apaixonado a sua frente. Não haveria de deixá-lo sair de sua vida — com vida… Ao serem liberados da delegacia na manhã seguinte, deram um enorme e apaixonado beijo na boca. Estavam livres! A rua era mais pública do que o banheiro de boate. E acontecesse o que acontecesse, casariam-se brevemente. Essa era a única certeza que tinham em suas vidas. E nem mesmo o destino ou os pais do noivo, poderiam mudar isso. Porque se o fizessem, ela também os mataria… Casaram-se seis meses depois. O destino e os sogros de Salmonela não compareceram a cerimônia, pois estavam mortos. Assim sendo, sem mais ninguém para atrapalhar a santa união, Salmonela e Karpathos — subiram ao altar. Desejaram ser felizes para sempre. Ou segundo gostaria Salmonela — até que a morte os separasse.


Para resumir a estória, o casamento seguiu cheio de acidentes, até o dia em que, inesperadamente, Salmonela ficou viúva. E riquíssima! Agora, única dona do tal império babilônico. Com o status de viúva bilionária, foi aceita pela alta sociedade conservadora carioca, com total simpatia e apreço, recebendo o título vitalício de “Bem-nascida quatrocentona”. E mesmo pesando sobre seus ombros, a suspeita absurda de que havia matado o marido, os pais dele e o destino, conseguiu pisar de forma elegante no tapete vermelho da alta burguesia. Imagina! - dizia. Essas socialites inventam cada boato… Eu, assassina?! Que absurdo! Vou oferecer um jantar beneficente a essas mortas de fome, e doar alguns milhões de reais para tapar a boca dessas velhas deformadas, que certamente sofreram rejeição de plástica. Parecem todas iguais! Sósias, gêmeas, clones do Nosferatu, filhas de cruz credo com credo em cuz. Feias como boneca de porcelana barata, remendada com cuspe! — bradava. Quando eu esfregar o talão de cheques na fuça delas, vão ter que me engolir! Aí eu quero ver se essas “vacas-vacilonas” não mudam o discurso! vociferava, tomava mais uma dose de Lexotan com champagne. Assim transcorreu seu alpinismo social exacerbado — rumo ao topo. Salmonela era uma pessoa impaciente com os outros e infeliz com si mesma. Jovem, viúva, rica, fogosa e inteligente, tinha o sucesso como aliado. E se antes não tinha sorte, agora podia pagar para consegui-la. "Tudo tem seu preço…" — dizia. E custasse quanto custasse, agora, ela podia comprar.


Assim, fez uma carreira meteórica no cinema. Transformou anônimos em celebridades instantâneas. Acabou com carreiras construídas por décadas de talento e dedicação. E pôs na mídia quem quis. Seu efeito dominó era devastador. Decapitava todos que se opunham aos seus desmandos. Consumia a todos até que virassem pó. Dedicando cada neurônio aos seus planos de vingança. E subia, subia… Queria ser famosa e reconhecida como artista. E de fato conseguiu. Ficou mais famosa do que a rainha da Inglaterra — esfregando-lhe a fama na cara. Vivia dando autógrafos mundo a fora, graças ao sucesso de seu mais recente best seller de auto-ajuda: Como ser rica e gostosa, sem fazer esforço? Case com um otário rico, queridinha! Inspirado no livro “O Jogador” de Dostoievski. Vendeu milhões! Tornou-se imortal. Envenenou o chá dos acadêmicos. E conquistou a presidência da academia num piscar de olhos, e algumas gotas cavalares de veneno de rato à mais. Ou como gostava de dizer: O boa noite Cinderela nunca foi tão eficaz… Matei muitos coelhos com uma só cajadada… Genial!


O tempo passou por sua vida como um romance. Foi tão feliz, que vivia se perguntando se merecia tudo aquilo… Seus filmes fizeram tanto sucesso de público e crítica, que ganhou todos os prêmios que um cineasta pode ganhar. Tornou-se amiga de presidentes, flertou com o poder em Brasília, ganhou uma emissora de TV, virou a melhor amiga do Papa, sendo indicado ao Nobel da Paz, e ganhou. Virou unanimidade em todo o mundo civilizado. "Não conhecê-la é sinônimo de ignorância máxima" — diziam os intelectuais. "Patronesse das Artes", "Mãe dos Pobres", "Milagrosa", "Evita Perón do Brasil"… Esses eram alguns dos seus inúmeros títulos. E como não podia deixar de ser, encerrou sua carreira de golpes aos oitenta e nove anos, dormindo. Morreu velhinha e em paz com a sua consciência. Matou quem precisava morrer. E se tinha feito algo de errado, não eram os mortos que iriam ensina-la a se arrepender de seus atos. No vídeo-cassete ainda ligado, encontraram a fita de um documentário que a senhora Salmonela supostamente assistira, antes de morrer. O documentário chama-se: “O Cinema Falado”, de autoria do cineasta Caetano Veloso. Aquele… Irmão da Bethânia. E ao lado da cama, na mesinha de cabeceira estilo rococó, foi encontrado ainda, uma fita de áudio com o poema “Estatuto do Homem”, na voz de Manuel Bandeira… E muitos pensaram: "Ela mudou!". Desencarnou como santa! Agora, entre mortos e vivos, estavam todos órfãos. Uma multidão acompanhou o cortejo fúnebre aos prantos… "Morreu a defensora das artes" — declarou a manchete do maior jornal do país… Anos depois, foi encontrado o seu diário, onde um parágrafo destacava-se dos demais. E dizia: "Quem nunca sentiu o peso da mão de um segurança do Estação, após ser pego fazendo saliência com um pseudo-pederasta-proxeneta-estuprador, cheirando pó com loló, tomando gasolina com mel, e sobretudo, com ingressos para as próximas sessões escondidos no “cofrinho”, que jogue a primeira pedra. Quem nunca cortou os pulsos após ver a cerimônia do Oscar, que jogue a primeira pedra. Quem nunca sentiu nojo de si mesmo, ao ser estuprado pelo pai do melhor amigo, após o convite escuso para participar de um filminho caseiro, regado à muita orgia, orgasmos e milk shake quente, que jogue a primeira pedra. Quem nunca engoliu, se é que sempre cuspiu, que nunca deixou gozar dentro, só fora, que diz que atrás nada entra; só sai, que nunca sonhou em fazer ménage à trois com uma prostituta e um astro de Hollywood, que nunca fingiu um orgasmo reto-vaginal: que jogue a primeira pedra. Quem nunca fez sexo oral no cinema: que jogue a primeira pedra. Quem nunca fez amor anal em Drive In: que jogue a primeira pedra. Quem nunca se masturbou no darkroom da boate assistindo um pornô: que jogue a primeira pedra. Quem nunca chupou bala com papel em banheiro público, ouvindo no iPod a trilha sonora de "Casa Branca": que jogue a primeira pedra. Quem nunca transou “papai e papai” ou “mamãe e mamãe” em cine-motel de beira de estrada: que jogue a primeira pedra. Quem nunca traiu a esposa com travesti num inferninho-matinê na zona do baixo meretrício: que jogue a primeira pedra. Quem nunca assistiu a um filme sentado no colo do lanterninha, com a lanterna enfiada até o cabo na rima: que jogue a primeira pedra. Quem não fez nada disso, chore! Pois não sabe o que está perdendo! Eu posso ser pior, mas igual a vocês, nunca!".


Fechado o diário, foram todos para casa rezar. E a história acabou. 


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