PARÁGRAFO 993




Gata via a vida como um fusca parado na porta. E ficava em casa se olhando, sem coragem de ir lá fora se tocar. Era uma vida espessa e coberta de uma condição dolorosa, vibrando em todos os cantos sem alcançar a redenção. Gata era uma dona de casa movida por sentimentos mórbidos. Sempre com medo de si mesma. Uma mulher sentindo-se incapaz de conviver com o outro, odiando-se à frente do espelho. Era uma alma aterrorizada que tremia ao imaginar-se espelhada na superfície refletora de raios luminosos. Temia não enxergar nada naquele objeto feito para refletir a imagem de pessoas e coisas. Logo ela, uma alma desencarnada, com medo de se materializar.

O seu estilo de vida era não ter estilo de vida. E quanto mais arrastava-se entre as tarefas cotidianas, mais caía na monotonia da rotina chata, sempre fazendo as mesmas coisas chatas, nas mesmas horas chatas, com a mesma má vontade de viver que fizera dela a chatice em pessoa. Uma gata apolínea de pelos fartos, alérgica a si mesma, miando os sentimentos de fora para dentro, mas nunca de dentro para fora. Era uma forma de viver morrendo, de morrer vivendo à moda stanislavskiana. Não que Constantin Stanislaski fosse um chato. Mas ela era.

Quanto mais se decompunha entre o tanque e a pia da cozinha, perguntando-se tudo e não encontrando resposta em nada, pensava como seria bom (e libertador) tomar uma  taça de chumbinho, beber soda caustica e ir dançar, colocar água sanitária na pipoca e ir ao cinema, ser atropelada por um caminhão de lixo, estar no avião que acabou de cair (mas não sem antes explodir no ar) ou ser assada pela bomba atômica, que algum dia, algum maluco, certamente irá jogar na Terra. Pensava o porquê das pessoas serem tão pequenas, medíocres, esteriotipadas, industrializadas, fora do prazo de validade, oxidadas, apodrecidas, chatas. Naquele instante desejou parar de pensar. E mesmo sendo pouco provável, embora fosse o seu maior desejo, logrou ter um aneurisma cerebral e ficar livre da memória. Logrou bater com a cabeça e esquecer até como se calçam os sapatos. Logrou levar com uma clava no crânio e tornar-se irracional. Ou sumir da mente sem jamais dizer para onde foi. Ela era o desagradável da vida embrulhado para presente. Era uma perda de tempo e mais nada.

Assim era Tuwanda, uma gata catastrófica em busca da melhor maneira de transformar sua vidinha mais ou menos num grande acontecimento. Gostaria de se libertar de uma vez por todas desse sentimento etc, quase nada, pouca coisa, lugar comum; que por fazer por merecer dá até medo. Com um caco de vidro na mão e os pulsos prestes a serem cortados, dizia:
 Comigo nada sobe. O que acontece aqui dentro, só eu sei. E tenho até que proteger o nariz, se não sangra. Não fico ereta. Sou uma mulher meio palerma, meio desatinada, que até para ficar de pé precisa se dopar. Vivo em busca de uma coisa que nem eu mesma sei o que é. O que assusta é minha incapacidade de fazer alguém feliz. Sou uma suicida em potencial. Mas não tenho coragem de me matar. E isso não é autobiográfico, querido. Eu não  me daria tão fácil. Eu sou um poço de falsidade. Uma alma ingênua tentando passar a perna nos outros. Estou de saco cheio de viver aqui nessa posilga com porco no teto. Nessa porcaria de vida cheia de inveja, lamento, desesperança e tinta para cabelo. Por isso, pratico a técnica baseada nos conceitos de pulsão, resistência, transferência e repetição. Busco meus próprios intentos. E já que não conheço a alegria, afundo-me na tristeza até alcançar o vazio da alma. Na raiz do problema só há problema. Não quero ficar parada como se fosse uma árvore. Porque plantada vendo a vida passar, tenho a sensação que até as árvores andam. Sou uma lâmpada incandescente, queimando e apagando até acender. Já fui de algum homem, algum homem já foi meu, e também de todo mundo que nunca foi seu. Danço conforme a música. E danço como uma louca. Estou em busca do melhor de mim mesma, procurando-me dentro da lixeira.  

Dito isto, ficou ali regurgitando e ouvindo “3 Porquinhos” do B5: “Ai, é sempre aquele ai…” e berrando Hateen: “Quem já perdeu um sonho aqui sabe o que é decepção… Parece que vai ser sempre assim… Nada dá certo pra mim…” 



Daí a gata subiu no telhado e gritou até ficar rouca. Naquele instante a loucura passou. Ela não era o lixo que pensava. Era só uma pessoa comum.


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