LE SURRÉALISME




Como você se sentiria se a Morte fosse a sua irmã mais velha?


Ela deitou-se no caixão deixando a tampa aberta. Seus olhos pareciam cuspir fogo. Olhos em brasa da Morte? Não. Ela não tem mais sentimentos. Apenas estava deprimida. Irada com as limitações que criou em torno de si. A Morte conformista? Não. Pensativa e cheia de perguntas sem respostas talvez. Conformada, jamais. Olhou-me como se quisesse me perguntar alguma coisa. Não disse. Era óbvio... A morte pede passagem com seus esteriótipos às avessas. Estava drogada e com fome. Sede de vingança era a palavra-chave. Fechou o caixão e ficou alguns minutos em silêncio, que pareceram uma eternidade. O tempo para a Morte é irrelevante. Fiquei sentado no chão, fitando-a. Não podia vê-la, mas sabia que o inferno habitava aquele caixão. Ela estava louca e queria se curar. "Saia deste inferno" – disse-lhe. Ela levantou a tampa do caixão sorrindo, como um animal dilacerado por sofrimentos estanques, que sente que sua morte é para ontem. Tinha encontrado as respostas dentro de si mesma. Tinha saboreado a alma do mundo à pontapés. Tinha aspirado a sujeira de um buraco negro e doente, como uma presa rebelde, inerte, amedrontada, particulada, esburacada, cheirando a quimioterapia, radioterapia, éter: gangrenando em terríveis sofrimentos metafísicos. Minh'alma é uma comédia de equívocos parnasianos. Um vaudeville teatral, com versão dramática do monólogo do eu, numa tragédia grega.

A vida seguia destacada e egoísta, arrancando da aurora, o lado mais escuro da noite. Lá fora o céu criava mais uma vez a sua obra de arte desnecessária. A lua cheia e evasiva, esculpida entre estrelas capengas, num céu cinza e melancólica, deixava em minha boca o gosto de sangue estragado. Uma visão à parte. Uma alma com o nome na boca do sapo. Um convite para matar.

Saímos para achar a próxima vítima. A Morte pede passagem mais uma vez. Eram duas horas da manhã e já tínhamos nos aquecido o suficiente. Não sei quantas pessoas haviam passado por nós, nem quantos corações pararam de rufar os seus tambores. Mas foram muitos. Todos pararam de bater em nossas mãos. Jaziam nas estradas, nos ranchos, nas matas, nos castelos, nos palácios, nas cidades e nos casebres à beira do riacho. Ao menos um em cada lugar. Mas todos precisavam acreditar que estavam vivos. E não sabiam que a Morte ia lhes fazer uma visita. “Um pequeno presente”,  disse a Morte, “cuja lembrança os acompanhará para sempre”.  “Todos tem medo de mim”,  ela disse. “Mas se esquecem de viver. Separam as coisas entre a suposta vida e a horrenda Morte. Deviam me adorar! Agradecer-me por arrancar-lhes o sopro de uma vida medíocre e o peso da inutilidade eterna. São preconceituosos, escravocratas, racistas, violentos, separatistas, corruptos, mercenários, capitalistas, ladrões, homofóbicos, mentirosos, assassinos. O ser humano não é humano. O ser humano é doente. O ser humano não gosta de gente. Eu os trato com amor, abro-lhes as portas do paraíso, liberto-os de suas vidas de plástico, sugo suas energias e lhes dou a chance de se livrarem de si mesmos, sem que levem para o inferno a culpa de serem suicidas. Covardes! Eu dou a essas figuras patéticas a chance de terem a eternidade embrulhada em Smoking Paper, e eles me pagam com ingratidão. Viver com gente é morrer aos poucos: diariamente. Sou uma heroína!”,  disse  usando seu sorriso sarcástico como moldura para sua ironia e voracidade.

A madrugada avançou tão rápido que nem percebemos o perigo que estávamos correndo. Logo nós que somos mais ricos que Zeus, correndo pela suja madrugada, a pé, como pobres mortais. Voltamos às pressas para casa, antes que o sol surgisse e ameaçasse os nossos planos. Fomos seguidos pela sombra de nossas próprias sombras. Chegamos a odiar a vida por ter nos dado a memória: com os olhos encharcados d'água. Quis fugir de mim mesmo e não pude. Fui enclausurado em mim como um condenado em uma prisão. E o pior, não me libertarei de mim, nem depois de morto. Por isso queria dormir e descansar no colo da Morte. Entramos no caixão e fechamos os olhos para o mundo dos vivos. Em algum lugar, aquela estrela horrível que aquece a Terra, já havia nascido. Odiávamos o sol como odiávamos a nós mesmos. Naquele instante, os mortais acordavam para trabalhar e recomeçar a viver, com os dois pés no chão. Muitos continuariam a dormir. Mas não saberiam... Iriam preferir acreditar que estavam vivos, intactos, sem saberem que a Morte tinha deles levado o corpo, os sonhos, o perdão, os amores, o ódio, a culpa e a alma. 

Adormeci lentamente, sabendo que o meu pensamento genial, não conseguiria se livrar um só segundo, deste corpo em crise. Não vou salvar a vida dos outros, quando a minha; desordenada, insiste em colocar ordem nesse sete palmos de terra. O dia estava apenas começando, e lá estava ela... Linda, jovem e em paz com seus mortos. Sei que vamos nos sufocar um ao outro. Nossa guerra particular, queridíssima irmã, não terá perdedor. Para gente desencarnada como nós, a Morte é só um brinde. O presente valioso, aquele que nos fará arder no fogo do inferno, só receberemos amanhã  quando não acordarmos mais. Quando eu lhe abraço é como se eu voltasse para dentro, para casa, para alguém que foi e é, o avesso dos adentros das profundezas da minha rara alma rasa.

Eu não tenho medo da Morte. Eu tenho medo de gente. Gente é a pior forma de vida pseudo-inteligente; inexistente. Na próxima encarnação quero vir bicho, ou terra, ou rocha, ou inseto, ou ar. Estou vivendo um dilema de ética, entre deixar esta sub-raça sem pedigree viva, ou pisá-la até virar pó de traque. Eu ainda sou muito jovem para acreditar que gente é feita somente de fezes. E quando morre: vira estrume. Gente não passa de Morte, destino, sonho, destruição, desejo, desespero, delírio. Mas sei que embora deteste gente, deve ter algum sentimento no âmago do esgoto, que é a humanidade, que me preserve da humilhação de ter que conviver, um segundo que seja, com esses miseráveis. O ser humano me ensinou a ler, escrever e sentir o veneno genocida da mágoa que não conhecia; como ódio, guerra, terrorismo, medo, vergonha, tortura, apodrecimento e solidão. Por isso que vida não rima com gente. Vida e gente é eufemismo. Vida e gente é incongruente. Porque viver com gente, não dá. Eu não gosto mais da vida. Ela me dá a medida exata daquilo que sou: do que me tornei. Daquilo que me distancia do que jamais fui. Por isso dói tanto. Dói saber que tanto fiz e que em nada me tornei. Dói ter andado milhas e não ter saído do lugar. Dói ser uma besta com cara de besta num coração bestial. Porque a vida me mostrou a sua força. E leve como uma folha, caí do térreo, e não das nuvens. Na vida não existe verdade. O que existe é a minha mentira, a sua mentira e a mentira do outro, que a partir de agora também é nossa. Mentira! 

Você faz parte do meu coração e agora conhece minh'alma. Meu espírito sorri porque temos você no eterno que há em nós. E nunca mais sós... só luas e cheias! Agora, você e eu, cuidaremos de nós. Porque nascemos para amar um ao outro como duas estrelas que se tocaram e tornaram-se uma. Quero dizer que lhe amo, que lhe quero, e que de hoje em diante não está mais só, porque vou cuidar de você, do nosso amor e de mim. Você sempre me amou como se eu fosse uma bomba. E implosivo que sou, morri aos poucos, se é que algum dia eu estive vivo. Meu testamento sou eu espalhado na grama, aniquilado, empalhado, apodrecendo numa caixa, sorrindo para um destino que a mim pouco importa. Cada segundo me violenta como se nunca mais fosse possível viver sem sentir medo. Meu corpo me matando... Logo a mim, que sempre fui vida.

Último suspiro do vampiro: "Eu vou para o lugar dos espíritos que vão voltar. Para as muitas moradas da Casa de meu Pai, e das almas que nascerão de novo: Juntas e felizes",  murmurei ao fechar os olhos mergulhados em pimenta doce. Jazia eu em mim. Enfim, tudo terminou.



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