VELHA HISTÓRIA


Dedicado à minha madrinha, Anilza Leoni, que quando morreu, estava lendo Mario Quintana.

Foto: Anilza Leoni e o elenco da peça “Mario Quintana – O Poeta das Coisas Simples”.




A minha infância foi cingida por livros. Eu era como uma ilha: “uma extensão de terra cercada de alma por todos os lados”. Assim era o limite dos meus dias. Sou do tempo em que livro não se comprava: herdava-se. Passava de pai para filho, como se faz com os bens materiais. A diferença é que ninguém precisava morrer para que o outro ganhasse um livro. Era só pegá-lo na estante. Na casa da minha infância era assim: o que tínhamos de maior valor, contava-se pela soma de nossos livros. Os livros eram a nossa fortuna. O nosso tesouro. O que nos representava por fora e por dentro. Eram o nosso passaporte para o mundo. Quando queria saber o significado de uma palavra, papai dizia-me: “Corra até o dicionário e pegue o vocábulo pelo pé”. E lá ia eu, óculos na cara, desvendar o segredo das palavras. Descobria coisas fantásticas! O que é “parnasianismo”, “monjolo”, “inconstitucionalissimamente”, “verborragia”, “celeuma”, “iconoclastia”, e uma infinidade de coisas, que para mim representavam o mundo das ideias. Mamãe vivia com seu livro de culinária a tiracolo, como se fosse uma máquina fotográfica de almas. Naquele livro sempre tinha uma receita de pão, de bolo, de mingau, de feijão, de arroz, de sopa, de remédio caseiro e de carinho doméstico. Tinha até poesia transformada em chá calmante. Era uma época de muita alegria. Lembro-me que mesmo na padaria, via as pessoas lendo. Era um hábito extremamente saudável. No bairro da minha puerícia, quem não lia, perdia o bonde.

Os livros eram tão importantes na minha família, que se tirávamos uma boa nota na escola, ganhávamos livros. Se passássemos de ano, então: era uma infinidade deles. Lembro-me do dia que ganhei “O Batalhão das Letras”, de Mario Quintana. Certamente foi o dia mais feliz da minha vida. Este livro proporcionou-me horas de puro lazer. E trouxe tantos outros livros, que o meu quarto ficou parecendo a Biblioteca Nacional. Depois dele veio-me “Pé de Pilão”, “Lili Inventa o Mundo”, “Nariz de Vidro”, “O Sapo Amarelo”, e “Sapato Furado”. Esses livros foram tão bons comigo, que trouxeram-me outros. Quando acabei de lê-los, às minhas mãos chegaram: “A rua dos Cataventos”, “Canções”, “Sapato Florido”, “O Aprendiz de Feiticeiro”, “Espelho Mágico”, “Inéditos e Esparsos”, “Poesias”, “Caderno H”, “Apontamentos de História Sobrenatural”, “Quintanares”, “A Vaca e o Hipogrifo”, “Esconderijos do Tempo”, “Baú de Espantos”, “Preparativos de Viagem”, “Da Preguiça como Método de Trabalho”, “Porta Giratória”, “A Cor do Invisível”, “Velório Sem Defunto”, e “Água”. E como sabiam que minh’alma continuava sedenta por literatura, os livros foram ainda mais caridosos comigo, e trouxeram-me: “Nova Antologia Poética”, “Prosa e Verso”, “Chew me up Slowly”, “Na Volta da Esquina”, “Objetos Perdidos y Otros Poemas”, “Nova Antologia Poética”, “Literatura Comentada”, “Os Melhores Poemas de Mario Quintana”, “Primavera Cruza o Rio”, “80 anos de Poesia”, “Trinta Poemas”, “Ora Bolas”, “Antologia Poética”, e “Mario Quintana, Poesia Completa”. Depois vieram as traduções do Mario: “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust, “Contos de Shakespeare”, de Charles e Mary Lamb, e tantas outras de escritores do quilate de Honoré de Balzac, Voltaire, Virginia Woolf, Graham Greene, Giovanni Papini e Charles Morgan, além de uma infinidade de contos policiais e histórias românticas.

O Mario sempre foi o companheiro de todas as horas. Porque o livro é o meu melhor amigo. É aquele que vai comigo ao médico, que viaja quando eu viajo, que interpreta as minhas alegrias e está no segundo da minha dor. O livro ensinou-me a não me levar tão a sério. A deixar as coisas fluírem naturalmente. Trouxe-me o Mario Quintana, esse amigo querido, que deu-me de presente um mundo repleto de dignidade, amor, esperança, fé e bondade, além de “Velha História”, e outras autarquias. O Mário representa o imaterial de minh’alma. E o livro é aquilo que sou e nunca fui, sem deixar de ser.




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Comentários

  1. Lindo, Betto! Você tem o dom de encantar com as palavras. Amo o seu blog! Amo os seus textos! Amo você! Bjs!

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  2. Luiz Ricardo do Amaral Peixoto28 de outubro de 2011 às 06:58

    Honestamente Betto, você é muuuuuuuuuuuito bom! Parabéns!

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