CLAIR DE LUNE






Eu tenho andado tão bonzinho ultimamente, que tenho medo que alguma coisa ruim me aconteça. Digo “bonzinho” mesmo:  não bondoso. Acho que a bondade, a face iluminada do bem, ainda não tomou conta de mim. Enxergo lampejos de bondade em mim, mas a escuridão ainda habita-me como a um lar. Apenas tenho essa máscara de bondade que uso mais para sobrevivência na selva do que como uma aptidão moral incrustada em bases sólidas. Talvez eu seja severo demais comigo mesmo. Mas dizer que sou bondoso: seria dar um passo maior que a perna. 

Entretanto tenho feito boas ações com a profusão de um meteoro. Hoje abri a porta do carro para uma senhora, deixei uma velhinha passar à minha frente no banco, sedi o lugar no metrô para um cadeirante, dei bom dia a um desconhecido, e ajudei um deficiente visual a atravessar a rua. Deve ser por isso que choveu a semana inteira. Acho que sou eu o culpado pelo mau tempo. Estou até pensando em fazer algumas “maldadezinhas”, como dar um nó no rabo do gato ou tirar doce da boca de criança, só para ver se o sol aparece. Mas, não. Sabe que estou gostando dessa minha fase de bom samaritano. As pessoas até estão aprendendo a falar bem de mim. Minha madrasta por exemplo, que sempre me achou o último dos homens, agora me liga todos os dias. Ontem me chamou de ‘filhinho’, vejam só. Só falta eu descobrir a cura para qualquer coisa, inventar algo fantástico, transformar extrume em ouro, que daqui a pouco vão dizer que estou até fazendo milagre: socorro.

E quando falo ‘socorro’, digo so-cor-ro mesmo, com todo o significado que o vocábulo traz dentro de si. Imagina uma pessoa como eu, que sequer diz obrigado, agora ficar destribuindo ‘sorrisinhos’ por aí. Corro o risco de ser encarcerado no manicômio como louco. Corro o risco de me olhar no espelho e não me reconhecer. Ou pior: corro o risco de ganhar o título de “Cidadão do Ano”, sem ao menos ter merecido o dito cujo. Socorro!

Em falar em socorro, já que descambamos para esse assunto, algo terrível me aconteceu a duas horas atrás. Estava eu saindo do tal banco, aquele que dei a vez para a velhinha, e eis que um ladrão tentou levar a bolsa de uma outra velhinha, que escorregou na minha frente e quase caiu sentada em cima de mim, se não tivesse ido parar numa poça d’água, jogando lama para todos os lados.  Para todos os lados, entenda: eu. Eu mesmo, o super herói da vez, decidi correr atrás do ladrão e resgatar a bolsa da velha. É óbvio que ele estava armado. É óbvio que ele apontou a arma para mim. E é óbvio que pelo sim pelo não, a arma podia ser de verdade e não de brinquedo. Acontece que para manter a minha reputação de bom moço, fiz aquilo que todo especialista em segurança pública, diz que não se deve fazer: arranquei a arma do bandido com um soco, rolei com ele no chão, dei-lhe uma surra sem precedentes. Só parei de bater quando me avisaram que ele já tinha sido levado para a cadeia à uma hora e meia. Ou seja, eu batia, mas quem apanhava era o vento. Chegando na delegacia, eu disse tantos impropérios para o ladrão, que xinguei até a quarta geração do meliante. Quando o delegado pediu que eu me acalmasse, xinguei o delegado, o escrivão, o detetive, o guardinha da porta, um padre que apareceu do nada, o meu advogado que acabara de chegar, e a minha madrasta que fora até a delegacia depor a meu favor: ou contra mim, sei lá. O amor que ela vinha sentindo por mim, acabou ali. O delegado ordenou que eu me calasse, senão seria preso por desacato à autoridade. É claro que não me calei. E se duvidar, o bandido foi solto no mesmo instante, em que eu era preso.

Em um rompante de raiva, o velho homem voltou, e eu pude perceber que não mudei nada: continuo desbocado e malcriado. Mas agora, enfim, o ‘socorro’ chegou. Perdi o título de “Cidadão do Ano”.

Voltei a dizer não.  



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