AS ROSAS NÃO FALAM



Ela lavava o rosto com água de flor de laranjeira quando o telefone tocou. Era do centro de acolhimento para crianças e adolescentes. Do outro lado da linha, uma mulher de voz rouca, dizia: “Senhora, o seu filho chegou”. “Filho? Como assim? Que filho?” – ela perguntou. “O seu filho, senhora. O bebê que a senhora está esperando nasceu. É um menino. Pesa dois quilos e oitocentos gramas. A autoridade judiciária aprovou o seu cadastro. O representante da Vara da Infância e da Juventude está aqui, aguardado pela senhora”. “Ah, o bebê. Graças a Deus! Está tudo bem com ele?”. “Tudo na mais perfeita ordem, senhora. É um rapazinho forte e sorridente. Só tem um ‘probleminha’, senhora. Não sei se a senhora vai gostar”. “Mas qual é o problema, minha filha? Diga logo! Está me deixando nervosa”. “Calma, senhora! Acidentes acontecem”. “Fala logo, querida. O que houve com o bebê?”. “Houve nada não, senhora. Só não sei se a senhora vai se incomodar: Acontece que o bebê é negro”. “Negro?! Como assim, linda? Negro?! Eu fui muito clara quando estive aí: Quero um bebê branco, recém nascido, do sexo FE-MI-NI-NO, bochechinha rosada, de aproximadamente três quilos e meio. E você me aparece com um menino, e ainda por cima negro?”. “Desculpe senhora, mas como informei: acidentes acontecem”.

Ficaram naquele jogo de empurra-empurra, até que a madame decidiu ir ao centro de acolhimento e ver o menino pessoalmente. Mas antes disso, chorou muito. A maternidade era um sonho antigo. Fora casada por mais de dez anos. O marido era estéril. Com o tempo, a relação acabou se desgastando, ele trocou-a por outra dez anos mais nova, e saiu de casa. Já passava dos 40 anos. A essa altura da vida, engravidar não seria uma tarefa fácil. Quanto mais para ela que era marinheira de primeira viagem. A adoção passou a ser a opção mais provável. Não viveria a experiência de arrastar-se por nove meses carregando um bebê no ventre, aventurando-se numa gravidez de alto risco. Para complicar mais a vida, sofria de pressão alta e de cardiopatia congênita. Nenhum médico aprovaria uma gravidez nessas condições. Hipertensa e cardíaca: a gravidez seria um coquetel molotov. Por isso optou pela adoção. “Mas essa agora, um bebê negro? Misericórdia!” — pensou. “Não é preconceito” — argumentou. “É apenas precaução”. “O que uma mulher branca, loira, de meia idade, e ainda por cima divorciada, faria com um menino negro nos braços?”. “O que os vizinhos vão dizer, meu Deus do Céu?!”. “No mínimo vão achar que eu enlouqueci!”. “Não é preconceito, não. Não é mesmo. Se já é difícil criar uma criança branca em uma sociedade preconceituosa e racista, imagina um menino afrodescendente!”. A história foi muito cruel com os negros neste país. Não seria ela que iria descascar esse ‘abacaxi’  pensou. Sentia-se envergonhada, mas estava decidida a abortar o plano da adoção. Não para sempre, mas até aparecer o bebê dos seus sonhos. Um que fosse, digamos: ‘clarinho’.

Depois de duas horas confabulando com o espelho, decidiu sair de casa. Chegando ao centro de acolhimento, estava com os olhos vermelhos de tanto chorar. Era um misto de alegria e pavor. “Um bebê negro, meu Deus! Onde foi que eu errei?”. Enxugou as lágrimas, respirou fundo, subiu as escadas do centro de acolhimento, tocou a campainha e esperou. Um minuto depois (que pareceu uma eternidade) a mulher com voz de cigarro abriu-lhe a porta.

— Bom dia. Meu nome é Rosa Bittencourt. Ligaram-me esta manhã sobre o ‘menino’.

— Entre, senhora. Chamo-me Amorosa. Fui eu quem ligou.

— Pois não, Amorosa. Onde está o garoto?

— Faça a gentileza de me acompanhar, senhora. O representante da Vara da Infância e da Juventude aguarda-lhe na sala ao lado.

Depois de duas horas de conversa, soube que na manhã do dia anterior, havia sido encontrado um bebê dentro de uma lata de lixo, próximo ao centro de acolhimento. Isso era muito comum por ali. Era um menino negro, conforme a moça do abrigo havia informado. Passava bem: saúde perfeita. Após os exames de rotina, o garoto estava pronto para ir para casa. Mas que casa?! Como a senhora em questão era a primeira da lista, decidiram comunicá-la. Com um pouco de sorte, caso ela aceitasse levar o bebê, o “problema” seria contornado. Uma criança negra é difícil de ser adotada. A maioria prefere bebês loiros; de olhos azuis. “Ainda mais para uma mulher branca, sair do orfanato com um bebê negro nos braços, é no mínimo constrangedor”  pensou. Pensou em muitas coisas. Pensou no bebê, pensou nos pais do bebê, pensou em si mesma, em sua família, nos amigos, no chefe, na alta sociedade, na imprensa cor-de-rosa, na carreira executiva, nos colegas de trabalho, no ex marido, na amante do ex marido, e nos próprios pais: que pelo andar da carruagem, nunca seriam avós. Confusa, decidiu ver o bebê.

O menino era lindo. Nada parecido com o que ela havia sonhado, e nem por isso, menos belo. O olhar da criança desarmou-a. Tinha tanta vida nos olhos daquele menino, que ela sentiu-se envergonhada de tê-lo rejeitado precocemente. Era um bebê, apenas. Uma coisinha minúscula precisando de amor e carinho. Só isso. Aproximando-se do berço, pegou o menino no colo. Ele sorriu-lhe como uma rosa em botão. Isso mesmo. Ele sorriu como uma rosa prestes a desabrochar. Era um sorriso largo. Um sorriso de quem veio ao mundo disposto a vencer.

Ela não pensou duas vezes. Deixou o preconceito de lado, olhou nos olhos da mulher de voz rouca, e falou:

— Onde é que eu assino?


Levou o bebê para casa e hoje Pedro Henrique completa 21 anos.    
  

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