HEY-YA!






O Festival Internacional de Brakdance era a nossa chance de tornarmo-nos mundialmente conhecidos. O nosso grupo é formado por dez B-boys e cinco B-girls. A cultura hip-hop corre em nossas veias. Desde que nos conhecemos por gente, lá está ela, trazendo-nos o rap, o DJ, a breakdance e o grafite. Afrika Bambaataa, criador do movimento na década de 1970, é o nosso Dalai Lama. E a música: o nosso Tripitaka. Nascido no South Bronx, em NYC, o hip-hop ganhou o mundo. Arrastados pelo ‘loop’ e comprimidos em dois ‘tumtables’, deixamo-nos carregar pelo ‘sampling’ e deleitados em ritmo e poesia, entregamo-nos ao rap. Somado a isso, nos arrastamos pelo ar e giramos no chão, enamorados pelo ‘popping’, pelo ‘locking’ e pelo ‘up-rocking’. O grafite chega a ser a nossa maior fonte de inspiração, quando estamos dançando. Fechamos os olhos e nos imaginamos rodopiando pelas paredes, entre um desenho e outro, dissecados pela pintural-mural. Misturamo-nos à tinta, e mesclamos alma, corpo, espírito, mente e coração, unindo as artes plásticas e a literatura num só corpo.

A ideia era mostrar no festival, a nossa releitura de “Rei Lear”, – de William Shakespeare. Quando entramos no palco, a platéia já entendendo que o que mostraríamos ali, era o preciosismo em pessoa, aplaudiu-nos por cinco minutos, antes mesmo de dançarmos. Aquilo foi a glória, pois tínhamos ensaiado tanto e queríamos tanto ganhar, que o fato de sermos recebidos no ‘red carpet’ do rap, era a nossa consagração. Estávamos no placo do Carnegie Hall e sabíamos que isso não era para qualquer um.   

Eu fazia o papel de Rei Lear. O Soberano octogenário, que ao ver que a morte batia-lhe à porta, decidiu repartir com as filhas, a honra e a glória de seus últimos dias de reinado, entregando-lhes em vida, os bens a que tinham direito. Para tal, chamou as três moças, sendo que duas delas eram casadas, e uma solteira. O reino ao qual falamos é a Coroa da Britânia, e as moças a quem nos referimos são Goneril, a mais velha, Regan, a filha do meio, e Cordélia, a caçula. Goneril é casada com o Duque de Albânia. E Regan é esposa do Duque de Cornualha. Rei Lear, como já dissemos, estava velho demais para reinar. Por isso sentia que o melhor a fazer era repartir o seu reino. Mas o que Vossa Majestade não previa, era que Goneril e Regan, amavam mais o poder e a si mesmas, do que o pai e os maridos. Cordélia que sempre teve um bom coração, embora fosse a preferida do rei, acabara sem nada.

Acontece que Sua Majestade disse que repartiria o reino, de acordo com o tamanho do amor, que cada filha sentisse por ele. Obsecadas por dinheiro, Goneril e Regan mendem até não poder mais. Maquiavélicas, convencem ao pai, que merecem ficar cada uma com a maior parte de seus bens. Como elas disseram que sentiam pelo pai, o maior amor do mundo, e sendo Rei Lear um egocêntrico, acabaram ficando com todos os bens que o soberano possuía. E uma vez, praticamente donas da Inglaterra, passaram a tratá-lo como um fardo difícil de carregar. Cordélia que limitou-se a dizer ao pai que o amava com o respeito que uma filha tem o dever de sentir pelo pai, foi deserdado, pois o rei achou que palavras tão simples, significavam que ela não o amava. Enfim, uma vez humilhada e expulsa do palácio, Cordélia se vê obrigada a casar-se e dali partir. Tinha dois pretendentes, um que era o Rei de França, e o outro, que era o Duque da Borgonha. Quando viu que Cordélia estava predestinada a viver na miséria, o Duque da Borgonha, desistiu de com ela casar-se. Sobrando ao Rei de França desposá-la. Este o fez com a maior alegria, pois vira nela só amor e sinceridade. Casaram-se enfim, e como era de se esperar, partiram para a França.

Uma vez dividido o Reino da Britânia entre Goneril e Regan, as duas mostraram a verdadeira face. O rei exigira que cada uma deveria recebê-lo em seu palácio, e hospedam-se mês a mês, alternadamente. Uma outra exigência que Lear fez, foi que permaneceria em sua comitiva, o número de cem cavaleiros reais. Acordo fechado, a vida seguiu o seu rumo. Contudo, o que o rei não podia esperar, era que tanto Goneril quanto Regan, mentiram sobre os seus sentimentos. Estas que não amavam a ninguém, ludibriaram o pai com seus galanteios. Agora, o rei que perdera o poder, estava nas mãos destes monstros.

A história segue, enquanto a nossa apresentação no Festival Internacional de Brakdance acontece. E eis que chegamos à cena em que depois de quase um mês vivendo no palácio de Goneril, a filha incomodada com a presença do pai, inventa que está cansada de viver debaixo do mesmo teto, com aqueles homens brutos, que serviam ao rei. Lear sabe que os seus cavaleiros não são nenhum brutamontes. Muito pelo contrário: são homens honrados e educados que servem ao rei com suprema admiração. Goneril sugere  ao pai que reduza o seu séquito para cinquenta cavaleiros. Lear revolta-se com a presunção da filha, dizendo que aqueles senhores, eram tudo que lhe restara. Não abriria mão de seus vassalos. Depois de pelearem por alguns minutos, Lear decidi sair do palácio de Goneril, e muda-se para o palácio de Regan.

Junto ao rei estavam dois bons amigos. Um deles era o Conde de Kent, fiel conselheiro do rei, que durante toda a vida, servira Vossa Majestade. Durante a barbárie, que foi a decisão de Lear, de doar em vida todos os seus bens para as filhas mais velhas, que não o amavam, em detrimento da filha caçula, que tanto o adorava, deixando-a na lona, o Conde de Kent opõe-se à decisão do Soberano, quase indo parar na masmorra do palácio de Lear, por ter afrontado o rei, ao dizer que achava absurdo o que Vossa Majestade havia feito. Ensandecido, Lear retira-lhe o título de nobreza, arranca-lhe todos os bens, e expulsa-lhe da Britânia. Mas como o bondoso Conde de Kent, amava o rei, ficou ao seu lado, oferecendo-se como criado, ao disfarsar-se com nova identidade, só para estar ao lado de Vossa Majestade. Agora o Conde de Kent chamava-se Caio: o criado do rei. O segundo amigo, que falamos anteriormente, era o Bobo da Corte. Este, um fiel vassalo de Vossa Majestade, que ficara ao seu lado nos momentos de honra e de glória, agora com ele estava, nos tempos de tristeza e de dor.

Tanto Goneril quanto Regan, não queriam o pai por perto. Goneril achava um gasto desnecessário: manter cem cavaleiros comendo e bebendo às custas dos cofres do reino. E Regan não ficava atrás. Esta então, era mais perversa que a outra, dizendo aos quatro cantos do mundo, e falando mais alto para o rei ouvir, que o certo seria reduzir de cem para cinguenta cavaleiros, e de cinquenta para vinte e cinco, e de vinte e cinco para zero, os vassalos do rei. Ao perceber a maldade das filhas, Lear se revolta. Em uma noite dessas de chuvas e tempestades, onde os trovões e os relâmpagos cortam o céu, Lear viu-se com a alma ao relento, ao ser expulso do palácio de Regan. Assim, humilhado pelas filhas, o rei decidiu afastar-se.

Kent ao ver o rei deprimido, manda chamar Cordélia no Reino de França, e pede que venha socorrer Lear. Autorizada pelo marido, Cordélia volta para a Britânia, e traz consigo o exército francês. Sua Majestade depois de quase enlouquecer, foi curado quando estava no exílio no Castelo de Dover, graças a bondade de seus súditos fiéis, que colocaram à sua disposição, os melhores médicos da Corte.

Goneril e Regan, além de filhas infiéis, também eram esposas desleais. No tocante à infidelidade conjugal, ambas tinham o mesmo amante: o Conde de Gloucester. Este era um sujeito à altura do rés-do-chã. Um sujeito que roubara o próprio irmão, Edgar, expulsando-o do Condado e tomando-lhe os bens, o dinheiro e o poder. Enfim, este era o homem que ambas amavam.

Quando ficou viúva do Duque de Cornualha, Regan deixou claro que casar-se-ia com o Conde de Gloucester. Goneril quando soube disso, envenenou a irmã, e acabou presa. O Duque de Albânia ficou com os bens das duas, já que com a morte de ambas, e Cordélia tendo sido deserdada, ao Conde restou administrar o Reino da Britânia.

Antes de morrer, Regan e Goneril, sabedoras de que Cordélia invadiria o reino com o exército francês, tomando-lhes o poder, mandaram para a batalha, o usurpador do Condado de Gloucester, e este tendo vencido com suas tropas à guerra, manda prender Cordélia, que morre pouco tempo depois. Lear não vive mais que a filha, e este parte também. O Conde de Kent desencarna dias depois. O Conde de Gloucester morre em duelo. E o Duque de Albânia, o único herdeiro vivo do rei, pelas circustâncias que descrevemos acima, sobe ao trono da Bretanha.             

A nossa apresentação termina, e o que era esperado, acontece: ganhamos em primeiro lugar. Daí para o sucesso foi um pulo. Hoje vivemos exclusivamente da Arte. E embora pareça o final, a nossa história apenas começou. Temos o mundo para conquistar. Somos os reis da cultura hip-hop: seja na dança, seja na música, seja no grafite: é nossa a coroa, o cetro e o trono. O nosso DJing é o máximo. Os B.Boying são talentosíssimos. O MCing é um gênio. O Writing é da melhor qualidade. E o spray está na palma da mão. Com a maior das humildades, entramos para o “Hip-Hop Hall of Fame”. Somos os melhores, sim. E isso nos enche de orgulho.

Este foi o nosso “Rei Lear”.


FIM








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