CYMBELINE




Montar um espetáculo é sempre um desafio, e fazê-lo em LIBRAS é mais desafiador ainda. Nos preocupávamos com aqueles projetos que nunca saíam do papel, e resolvemos dar asas a imaginação, montando uma peça acessível a todos. Já estávamos ensaiando a dois meses, até que apareceu um patrocínio, corremos e nos inscrevemos num festival de teatro, ficamos em primeiro lugar, e com o sucesso da companhia, fomos convidados a nos apresentar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Daí para realizar o nosso sonho foi um pulo. Qual era ele? Apresentar “Cimbeline”, de nosso amado William Shakespeare,  no Instituto Nacional de Surdos.  

Aprendemos a Língua Brasileira de Sinais por intermédio de uma velha amiga nossa, uma atriz extraordinária, que era surda de nascença. Ela abriu as nossas mentes para uma realidade a muito conhecida: os surdos existem aos montes, e não há nenhuma política social efetiva, que os inclua como membros da sociedade, no tocante a terem acesso à arte e à cultura como qualquer outro cidadão. Isso nos incomodava bastante, já que como atores lidamos com os sentimentos humanos, e ver que parte da nossa população tem um acesso muito minguado ao que consideramos essencial à alma humana, fez com que entregássemos os nossos espíritos nas mãos deste público. Em LIBRAS, as estruturas sintáticas, semânticas, morfológicas, e assim por diante, são as mesmas usadas na formação do vocábulo na língua portuguesa. A isso soma-se o uso da imagem, que como todo processo de aprendizagem, é necessário o estudo e a seriedade. Embora seja em português, é praticamente um outro idioma, já que partimos do zero. Existem inúmeras linguagens de sinais, cada país tem a sua, e cada localidade acrescenta seus regionalismos, e sendo o Brasil um país continental, tudo que se refere as diferentes culturas aqui existentes, passa também para as LIBRAS. Como os pronomes pessoais não são representados e os verbos são usados no infinitivo, aprendemos a apontar o sujeito da nossa oração, para que fôssemos entendidos. Como tudo que é novo, o alfabeto parece complicado no começo, mas com um pouco de boa vontade e um desejo ardente de ser entendido, usando a expressão facial através da linguagem corporal, o diálogo acontece. Quando vimos que estávamos prontos, decidimos apresentar o espetáculo para o nosso amado público.

Cimbeline era o rei da Inglaterra (conhecida naquela época como Britânia). Era um rei bondoso, mas de temperamento bipolar, que oscilava entre o bom humor e a ira. Cimbeline tinha três filhos, dos quais os varões foram-lhe tirados na calada da noite, raptados por um de seus nobres, que acusado de traição, fora banido para terras distantes. Para vingar-se da infundada acusação de conspiração contra o rei, este nobre chamado Belário, antes de partir, levara consigo aqueles que seriam os futuros herdeiros da Britânia. Para que a dor de Cimbeline não fosse tão grande a ponto de levá-lo a morte, Belário deixa-lhe a filha, uma bela princesa de nome Imogênia. Preocupado com a criação de Imogênia, já que o rei viúvo perdera a esposa bem cedo, Cimbeline resolve casar-se novamente, e dar uma educação capaz de transformar aquela menina, numa dama da Corte. A nova rainha, uma mulher extremamente má, odiava Imogênia, mas vendo que a enteada com o desaparecimento dos irmãos, tornara-se a única herdeira do trono da Britânia, sonha em casá-la com seu filho, Cloten, e torná-lo rei. A rainha é uma daquelas madrastas de Conto de Fadas, que por seu temperamento de péssima índole, torna a convivência intragável. Contudo, os planos da rainha são frustrados, porque Imogênia casa-se em segredo com um jovem protegido de Cimbeline, cujo pai morto, lhe foi fiel a vida toda. O rapaz chama-se Póstumo, um órfão de pai e de mãe, que fora colocado pela providência divina, sob os cuidados do rei. Acontece que este ao ver que a filha casara-se pelas suas costas, com um homem sem título de nobreza, e ainda por cima um vassalo seu, ordena que este seja expatriado e nunca mais pise em solo Britânico, sob pena de morte. Póstumo é exilado em Roma de onde imagina que jamais sairá. Imogênia fica inconformada com a separação, todavia uma chama de esperança é acesa em seu coração, de onde parte a certeza de um dia revê-lo.

O tempo passa e Póstumo faz amizade com alguns jovens de sua idade. Vivendo em Roma e respirando toda a beleza daquela cidade, Póstumo aos pouco recupera a vontade de viver. A esperança volta a ocupar-lhe a alma, e o desejo de rever a sua doce amada, fica cada dia mais latente. Como acontece em nosso tempo, os rapazes daquela época eram dados a galanteios e afagos, e movido por um lampejo de paixão, conversando com seus novos amigos da Corte de Roma, Póstumo declara seu amor por Imogênia. Revela a todos que confia na fidelidade da esposa, que mesmo longe, continua a honrar-lhe o nome. Mostra aos rapazes o anel que carrega como uma prova de amor. Póstumo havia deixado no braço de sua amada, uma pulseira, que como o anel que ela lhe dera, era a representação de um bem-querer eterno. Todos ouvem com atenção, cada um enaltecendo a sua vez, a graça das mulheres de sua terra natal, e eis que um dos rapazes chamado Iáquimo, desafio Póstumo a testar a fidelidade de Imogênia. Movido por um desejo bobo e imaturo, Póstumo aceita o jogo do amigo, e Iáquimo parte para Britânia, com o objetivo de provar que qualquer um pode conquistar o amor da tal dama, desde que seja um galanteador convincente. Embora estivesse certo de que Imogênia jamais lhe trairia, Póstumo que estava enredado na trama de Iáquimo, cai na armadilha. Iáquimo era o tipo de homem que faria de tudo para ganhar uma aposta.

Chegando no palácio de Cimbeline, Iáquimo é recebido com honras de Chefe de Estado, porque é um homem importante nas Corte de Roma. Identificando-se à Imogênia, como um amigo pessoal de seu amado Póstumo, esta o trata como uma figura cara para o seu coração. Entretanto, Iáquimo estava ali para ganhar a aposta, e não para rapapés sociais. Portanto, ao esconder-se numa noite, num báu no quarto de Imogênia, Iáquimo rouba-lhe a pulseira que Póstumo lhe dera, observa cada detalhe dos aposentos da princesa, e parte para Roma, confiante de que a vitória era certa.

Chegando em Roma, Iáquimo conta a Póstumo que foi fácil conquistar o coração de sua esposa. Bastou declamar-lhe alguns sonetos e usar o alaúde para compor uma bela canção, que logo a moça caiu em seus braços. Descreveu cada detalhe do comportamento da moça: sua doçura, sua beleza, seu prazer de viver. Descreveu a Póstumo detalhe por detalhe dos aposentos da moça, cada quadro, cada objeto de prata, a formosura das cortinas de seda, e terminou o discurso entregando-lhe a pulseira de ouro, que Póstumo dera a esposa como um símbolo do seu amor e fidelidade eternos. Irado, Póstumo entrega a Iáquimo o anel de diamantes que Imogênia lhe dera, jurando que a mataria o quanto antes. Desesperado, escreve uma carta para um amigo seu em Britânia, um oficial da Corte chamado Pisânio, e pede ao patrício que mate Imogênia. Como era um nobre Cavalheiro de Britânia, e devia respeito a pessoa do rei, recusou-se a dar fim a vida da moça. Mas para não aborrecer ao caríssimo amigo, disse a Iáquimo que faria o que ele mandou. Naquele mesmo dia, Imogênia recebe uma carta do marido, que pede a ela que se dirija ao porto de Milford-Haven, e que de lá partisse para Roma, com o intuito de encontrá-lo. Com o coração em festa, Imogênia foge do palácio durante a noite, e na companhia de Pisânio, segue para o porto. No meio do caminho, o cavalheiro revela à princesa o verdadeiro motivo daquela viagem. Imogênia desespera-se ao perceber que o marido mandara matá-la, mas é acalmada por Pisânio, que diz que não fará nenhum mal à filha do rei. Resolvem então que o melhor será que esta se disfarce de pajem, e siga viagem como um cavalheiro, até dcidir o que fará de sua vida. Imogênia concorda com o plano e passa a chamar-se Fidele. De volta à Corte, Pisânio escreve para Póstumo, dizendo que matara Imogênia.           

Fidele depois de caminhar muitas horas, cansado e faminto, acaba por abrigar-se numa caverna onde encontra água e comida. Percebe logo que ali deveria existir algum habitante, e que isso era um perigo, já que alguém logo regressaria e poderia não gostar de ter seus domínios invadidos por um jovem varão. Todavia, o cansaço era tanto, que Fidele acabou adormecendo. Acontece que como a providência divina não abandona a nenhum de seus filhos, os senhores daquela caverna eram nada mais, nada menos, que os irmãos da donzela, Guidério e Arvirago, que ao serem sequestrados por Belário, ganharam novos nomes, e agora chamavam-se Polidoro e Cadwal. Os rapazes foram criados por Belário como filhos, e nem suspeitavam que aquele homem bondoso, a quem amavam como a um pai, era na verdade o seu raptor. Ao regressarem à caverna, os jovens guerreiros e o pai, encontram Fidele dormindo, e este ao despertar na presença de todos, pede mil desculpas por ter invadido a caverna, mas explica que estava cansado e faminto, e que se não tivesse feito isso, acabaria morto. Ninguém ofende-se com a invasão, e tomados por um sentimento de extrema candura, os irmãos apaixonam-se pela alma de Imogênia, como se vivessem juntos desde a infância. Fidele passa a sentir-se em casa, e em retribuição à bondade de todos, passa a cozinhar e fazer todo o serviço doméstico, já que embora pareça um rapaz, é na verdade a princesa Imogênia, que educada para ser uma excelente esposa nos moldes da época, sabia fazer de tudo para o bom andamento de um lar.         
     
Quando despediu-se de Pisânio a caminho de Milford-Haven, Imogênia recebeu deste, além de roupas masculinas, um frasco contendo um poção, que fora dado a Pisânio pela rainha, onde encontrava-se um potente sonífero. A rainha ao dar o frasco a Pisânio, supunha que era um poderoso veneno. Como odiava o rapaz, já que este era amigo de Póstumo e de Imogênia, estava decidida a matá-lo. Mas o médico real, sabedor das verdadeiras intenções de Vossa Majestade, ao invés de dar-lhe o veneno, dera-lhe aquela poção, que era capaz de fazer alguém dormir tão profundamente, que pareceria estar morto. Sem saber que se tratava de um sonífero, Pisânio achando que trazia ali um fortificante, presenteara à princesa, aconselhando que tomasse, caso precisasse revigorar as forças. Devido ao cansaço e a tristeza, Imogênia acaba doente, e vendo-se debilitada, resolve ingerir a poção mágica. Desde então, cai em sono profundo, sendo considerada morta por Belário, Polidoro e Cadwal, quando estes voltaram de uma caçada. Desesperados pelo aparente desencarne da moça, que estes pensavam ser o jovem varão de nome Fidele, preparam-lhe um distinto funeral, e deixam-no na floresta, para que possa descansar em paz. Polidoro e Cadwal prometem a si mesmos, que enquanto durasse o verão, iriam todos os dias levar-lhe flores, como um presente de amizade eterna. Ambos afeiçoaram-se a Fidele como se este fosse um irmão muitíssimo amado. E embora não soubessem, aquele que ali jazia a sua frente, era de fato sangue de seu sangue.

Ao acordar do sono profundo, Imogênia ao ver-se sozinha, coberta por um monte de rosas (singelo adorno usado naquela época para enfeitar os mortos), a moça retira de si as flores, e achando-se desperta de um sonho fantástico, sai em busca de Póstumo: seu eterno amor. A ideia era apresentar-se ao marido como se fosse um rapaz, ganhar a confiança dele, e quando fosse possível, revelá-lo a sua verdadeira identidade. Entretanto, como a vida nem sempre transcorre segundo o nosso desejo, quando dirigia-se a Milford-Haven, Imogênia fica sabendo que o exército de Roma iria invadir os domínios da Britânia, no intuito de matar o rei e ocupar a Inglaterra. Obedeciam ordens expressas de Augusto César, Imperador de Roma, que desejava ter a Britânia sob seus domínios. Ali mesmo na floresta, o jovem Fidele é convocado a servir de pajem ao general Lúcio. O general romano ao perceber as boas maneiras do rapaz, decidiu que este era indispensável para servi-lo, ficando o jovem responsável por seus cuidados pessoais. Em meio à guerra, Póstumo segue para invadir à Britânia com o  exército romano, mas oculta o desejo de quando lá chegar, unir-se às tropas britânicas. Afinal, ninguém em sã consciência iria atacar seu próprio povo, mesmo que tivesse sido banido de sua pátria pela tirania do rei. Póstumo sabia que o rei não era uma má pessoa, mas que certamente movido por algum estratagema insuflado por uma alma ruim, tomara certas atitudes, digamos, precipitadas. Sendo assim, defenderia a honra de Cimbeline com a própria vida, se fosse preciso. “Um homem não é senão um rato, se não luta por seus ideais” – dizia.

O exército inglês acaba vencendo a guerra, e depois de inúmeras batalhas, os romanos entregam as armas. Iáquimo (oficial do exército romano: aquele que vencera a oposta contra Póstumo), o general Lúcio, Belário (nobre que raptou os filhos do rei), Polidoro e Cawal (Guidério e Arvirago, filhos de Cimbeline e irmãos de Imogênia), Iáquimo (marido da princesa), foram levados à presença do rei, para serem julgados e condenados. Ali também estava o oficial da Corte britânica, o caridoso Pissânio, que contra tudo e contra todos, poupara a vida da princesa. E este, logo que a viu, reconheceu-a de imediato. Ela portava as vestes que ele lhe dera, além de conservar à face: a beleza real que tanto o encantava. Todos ali seriam condenados à morte, se o general Lúcio não intercedesse ao rei, pela vida daquele jovem rapaz de nome Fidele, que o havia servido desde o início da guerra. Lúcio revela a Cimbeline que embora o pajem estivesse a serviço de Roma, era tão fiel e prestativo, que merecia ser poupado de uma condenação tão severa quanto a morte. O rei acata o pedido, e tomado de célebre bondade, concede ao rapaz um único desejo, capaz de salvar a quem quer que fosse naquela sala. Lúcio achou que Fidele iria devolver-lhe a gentileza, e clamar por sua vida, mas surpreendeu-se quando o pajem disse que o pedido que mais ardia-lhe à alma, era o de saber o que aquele anel real, que havia pertencido à princesa, fazia no dedo de um romano. Iáquimo acabou confessando que havia ludibriado o amigo Póstumo, com uma história de traição por parte de sua esposa, e que como pagamento de uma aposta, conseguira o anel de diamantes. Póstumo ao saber de toda a verdade, arrepende-se de ter mandado matar a esposa, e inconsolável cai em prantos, gritando o nome da amada: Imogênia!

Vendo o esposo jogado ao chão, Imogênia revela-se a todos, deixando o rei e seus súditos, muito contentes. Comovido por tão emocionante cena, Belário conta ao rei que raptara os príncipes no intuito de vingar-se, e apresenta-os a Cimbeline, que reconhece na pessoa de  Polidoro e Cawal, os príncipes Guidério e Arvirago. Imogênia pede ao pai que poupe a vida de Lúcio. A rainha, que era a maldade em pessoa, vê que de nada valeu ter incitado na mente do rei, o desejo de expulsar Póstumo do palácio, e que de nada adiantara seus planos de casar Imogênia com seu filho Cloten. Duas semanas depois, Cloten morre em meio a um duelo, a rainha adoece e desencarna, e tudo volta ao normal. Iáquimo é solto e ganha o perdão real. A vida de Lúcio é poupada. Finalmente a paz volta a habitar o reino da Britânia.

O espetáculo termina neste clima de felicidade eterna, já que Cimbeline recebe Póstumo de braços abertos, e este casa-se novamente com Imogênia, e vivem felizes para sempre.

Tudo isso foi encenado para os nossos “surdinhos” com todo amor deste mundo. A platéia veio a baixo e fomos ovacionados por intermináveis vinte e cinco minutos. A nossa missão estava cumprida. Prometemos a nós mesmos que iríamos arrancar do papel, o projeto “Teatro Para Deficientes Auditivos”, através da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), e ali estávamos nós, realizando com primazia o nosso sonho.

Hoje nos dedicamos integralmente ao Instituto Nacional de Surdos, partindo de lá para o mundo, o nosso dever cívico.

Depois que descobrimos que o melhor da vida é viver, decidimos fazer isto com toda a força de nossas almas, daquele dia ao infinito, sem conclusão de curso.

God Save The Theater!       



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