SLOW TRAIN





Ainda lembro-me como se fosse hoje, do dia que papai morreu. Tudo tinha gosto de morte. A água, o chão, o cinzento do céu e o conhaque de alcatrão. Esse então, era todo morte. No velório, estava eu todo enroscado nos meus sentimentos, e papai ali, parado. Mamãe contratara umas carpideiras, que choravam tanto, que mal aguentavam-se em pé. E lá estava ele, parado num canto da sala: O gosto de morte. Serviu-se chá com torradas. Serviu-se bolo de fubá com geléia de abricó. Bandejas e mais bandejas passavam por mim, pé ante pé, abarrotadas de carboidratos. E por mais que eu tentasse esquecer, tudo tinha gosto de morte. O café era ralo. O açúcar era sal. Tudo a minha volta era um amontoado de carbono, hidrogênio e oxigênio. E a dor, servida aos pedaços, tinha cheiro de nitrogênio, fósforo e enxofre, embrulhados para viagem. Foi inútil tentar disfarçar a saudade. Porque aquele ali, deitado no caixão, era um pedaço de mim. E já que falo das minhas lembranças, contarei como essa história começou: Papai era uma alma de maçarico aceso e calor senegalês. Mamãe, dia de chuva em noite de luar. Ele, um caixeiro viajante, vendia de tudo: de sonhos a pesadelos. Ela, uma mulher com a alma pelo avesso, acostumada à xarope de hortelã para tosse. Ou, bala de gengibre para a rouquidão. Enquanto ela fazia seus remédios caseiros, papai fabricava vestido de noiva e paletó de defunto. Conheceram-se no domingo de Páscoa, após a missa das sete. Naquele dia foram juntos à quermesse, que abençoada por Deus, uniu esses dois estranhos num só corpo. Como caixeiro viajante, papai arrancava dente, cortava cabelo, aplicava injeção, costurava sonhos e realizava desejos. Como farmacêutica, mamãe curava doentes. Papai, atrás do pão nosso de cada dia, hoje estava aqui, amanhã acolá, passeando pelo mundo de mãos dadas com sua alma encapsulada. Mamãe, seja em casa ou na farmácia, estava sempre só. E embora soubesse que papai era mulherengo, acreditava que longe ou perto, o seu coração era dela: Mesmo que pertencesse a outras. Papai era um charme! Parecia-se tanto com Machado de Assis, que era conhecido no bairro como O Bruxo do Cosme Velho. Coitado: de tanto vender sonhos, acabou vítima do próprio desleixo, ao vender sem querer, a alma ao diabo. Foi assim que papai morreu: de morte matada, não de morte morrida. Morreu no dia que o diabo veio buscar à alma que papai lhe vendera a preço de banana. Uma pena... Eu nasci num desses encontros e desencontros dos meus pais. Mamãe, amargurada. Papai, viajando. E eu ali, experimentando o gosto da morte, desde o dia que nasci. Os anos passaram, papai aposentou-se, mamãe aquietou-se e eu cresci. A vida seguiu lentamente o seu curso, horas boa, noutras ruím, até o dia de hoje. E agora papai ali, seco como um graveto. Que boa alma era papai... Que alma era aquela! Doce, suave, morna, delicada, aconchegante e terna. Isso mesmo: papai era uma alma cheia de vida! Assim era aquela que animava o corpo daquele homem: Feliz. Suas últimas palavras, foram: 'Eu uso antropomorfismo com meu cachorro, porque ele é mais humano que eu'. Em seguida virou-se para mamãe e disse: 'Perdoe-me por te amar. Só não me peças para te esquecer'. Depois virou-se para mim e sussurou: 'Se eu não vir mais você... Se eu não vier mais aqui... Por favor, me esqueça'. Por fim, acenando para o diabo, completou: 'Mudei-me de mala e cuia para o seu coração, e fiquei sentado no meio da rua, de frente para o inferno, com medo que você olhasse para mim e dissesse: Não, não é isso. E eu ali parado, com a alma nas mãos, sem ter para onde voltar'.

O velório de papai foi uma experiência ante-mortem para mim. Lembrou-me que morri dois dias antes de nascer. Gosto de desenterrar esses sentimentos do passado, tirados de uma das gavetas da memória, cuja lembrança nãme pertence. A minha vida é um trem lento; desgovernado, descarrilado à minha frente, sem ter asas para voar.










® SLOW TRAIN© copyright by betto barquinn 2011
TODOS OS DIREITOS AUTORAIS RESERVADOS BY BETTO BARQUINN

Comentários

  1. Oi Betto! Cara, que texto maneiro. Você consegue tocar na alma da gente de uma forma muito bonita. Toda vez que leio um texto seu, me lembro de Clarice Lispector. Você tem o dom da Clarice para escrever coisas tão profundas e mágicas. Você é um escritor para gente grande, meu caro! Gente de alma pequena não te entende, não! O seu texto não é nada comum. Como no traço de Clarice, você costura metáforas, fazendo assim uma colcha de retalhos humana extraordinária. Fantástico, Betto! Você é de fato um grande escritor. Vida Longa ao Rei, meu Rei! Abs!

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  2. slow train, dylan, ótimo link... betto, muito legal seu texto, ótimas metáforas e a emoção latente de sempre... um abração.

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  3. Show train!
    Texto muito bom, mais uma vez. Parabéns grande Betto!
    Grande abraço,
    Afonso.

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  4. Antônio Maia Ribeiro3 de julho de 2011 às 11:30

    Eu sempre me emociono com seus textos, Betto. Lembrei de como eu gostava do meu pai e do quanto perdemos tempo com brigas intermináveis. Você fala de um jeito e escreve coisas tão profundas, que é impossível não ficar com lágrimas nos olhos. Agora estou decidido a amar muito e fazer muita coisa boa nessa vida. Seu texto é libertador. Deus abençoe.

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  5. Sucesso, Betto. Você merece toda a felicidade do mundo! Bjs!

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  6. Pedro Paulo Figueiredo3 de julho de 2011 às 18:55

    Muito bom, Barquinn! Abs!

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  7. Betto, todo mundo deveria ler os seus textos. Muito bom saber que temos no Brasil um escritor que toca tão profundamente a alma da gente. Você fala de saudade, esse sentimento tão nosso, que só quem fala português consegue entender. Os sentimentos humanos estão aí, escancarados a nossa frente, para quem quiser ver e sentir. Adorei o texto, menino. Parabéns, meu Rei! Abs!

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  8. Talento é para poucos, meu Rei. E isso você tem de sobra. Amo os seus textos, querido. Bjs!

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  9. Sucesso, Barquinn! Alguém que escreve tão bem assim, merece o melhor da vida! Abs!

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