TOSCA
Esta noite saí para assistir a ópera “Tosca”, de Giacomo Puccini, e acabei sentindo-me como Floria Tosca, ao ver-se encurralada entre o amor de seu Mário Cavaradossi e a paixão do Barão Vitellio Scarpia. Naquele instante, a vida passou por mim em três atos. O trágico tornou-se um sinuoso traço descendente no infortúnio da minha biografia. E parado no tempo, entre o ser e o não ser, cheguei a seguinte conclusão: Todo amor fortalece. E todo amor absoluto fortalece absolutamente. Porque não existe outra forma de amar senão amar profundamente. O que sobra disso tudo é paixão. Amor é a eternidade caminhando para o infinito. Paixão, não. Paixão fica aqui mesmo. Nasce e morre com o homem. O amor, não. Amor é sentimento dos anjos, dos santos, dos beatos, dos homens de boa fé. O amor é o único sentimento que nos acompanha quando nascemos e vai embora conosco quando morremos. O amor não é desse mundo. O amor não termina aqui. Nasce na alma das pessoas. Vai e volta com elas. O amor é o maior desafio do homem, porque é aquele que diz: “Conhece-te a ti mesmo”. Uma vez descoberto quem somos, não voltamos atrás um milímetro, porque a verdade sobrepõe-se a qualquer desafio. Por isso, do alto da minha pequenez, eu me olho e me envergonho. Alguém morreu por mim na cruz. E nessa mesma cruz, lavou o mundo com seu sangue, e eu me orgulho tão pouco disso, que continuo pecando descaradamente, sem enxergar a verdade parada a minha frente. Eu sou fraco. Decididamente: valho muito pouco ou quase nada. Eu sou o nada disfarçado do tudo e sou o tudo disfarçado de nada. Sou aquilo que não sou. Idolatro um ser que desconheço.
Eu me sinto denso e me sinto extenso. Como se uma força contrária a mim, viesse com tanta força, e me atropelasse. Não sou o tipo de pessoa que veio ao mundo a passeio. Sinto-me tão responsável por tantas coisas, pelo destino íntimo de tanta gente, que se parasse agora de pensar como penso, e me transformasse naquilo que não sou, somaria desilusões a todas as minhas perdas. Eu sou uma pessoa comum e quero continuar sendo assim. Não quero me prender ao luxo e a riqueza de uma vida amparada na matéria, que sumariamente, não apóia ninguém. Porque a matéria morre. Os tesouros desse mundo são tão passageiros, que o sujeito apodrece antes mesmo de morrer. Eu vejo muito apego ao inapegável. Vejo pessoas sendo leiloadas no âmago do ser. Vejo sentimentos sendo rotulados como se a “pessoa”, o “sujeito”, o “indivíduo”, “o ser invisível e imaterial” que ocupa aquele corpo, não existisse. Sentimentos são banalizados a três por dois. O que o outro sente é tão importante para alguns quanto uma folha seca. Vejo pessoas se perderem no abismo de si mesmas. E uma vontade incontrolável de menosprezar o sentimento do outro. A humanidade tornou-se um personagem mórbido, que insiste em gozar vendo o outro sofrer. Nada mais importa. Viver virou uma crucificação diária. Os bons sentimentos, os encontros e desencontros da vida, o diálogo, o afeto, o aperto de mão, a soma de tudo que somos, virou peça de museu. Qualquer coisa que se prove em contrário, é tão contraditório, que me leva a uma enxaqueca profunda. Minh’alma sofre toda vez que me vê assim. Nasci para ser útil à humanidade inteira. Servir é o meu objetivo mais íntimo. Sou um operário da arte, assim como sou um servo do labor diário do pensamento. Não me separo de mim um só instante, e mesmo assim, quanto me desconheço. Sei que há em mim uma matéria imaterial, algo que me fortalece, pelo simples fato de existir antes e depois de mim. Eu não sou isso que veem. Eu não sou esse boneco de carne e osso, que às vezes sente frio, às vezes sente calor, às vezes tem dor de dente, às vezes nem sabe o que sente, às vezes chora copiosamente, com medo de apagar a luz e descobrir que a escuridão é ele mesmo. Nunca tive medo de mim. Nunca tive receio de ficar comigo. Mas ultimamente ando tão cansado desta vida, tão irritado com a inércia que se nos apresenta, como se a vasta enxurrada da humanidade desaguasse no terreno infértil das paixões. Eu vim à Terra por amor. Voltei para o lamaçal das perplexidades humanas, porque desejei ser feliz, fazendo o outro feliz. Porque para mim felicidade é isso. Quando eu morrer não vou levar daqui senão a mim mesmo. Sou o reflexo da dor no espelho d'água. Sou um homem cheio de ferida. Mas não me prendo a ela. A tristeza é a única coisa que não me pertence. Não sofro por intermédio da dor. Sofro pela incoerência, pela total falta de decência, por viver num mundo que troca seis por meia dúzia. O meu sofrimento encaro com esperança. Se aqui dói, tomo um analgésico que passa. Às vezes em marcha lenta, noutras em alta velocidade, mas com o mesmo objetivo com que fui criado: ser feliz proporcionando ao outro o que o meu espírito tem de melhor. Porque o meu pior, aquilo que em mim execro, guardo no escaninho de minh'alma: para um dia olhar dentro de mim e perceber que todo lixo que juntei, vida após vida, foi parar num monturo que não me pertence mais.
Tosca morre no final. Cavaradossi e Scarpia também. E eu, como todo sobrevivente que se preza, ainda estou aqui: juntando os meus pedaços espalhados ao chão.
TOSCA ™ © copyright by betto barquinn 2011
TODOS OS DIREITOS AUTORAIS RESERVADOS BY BETTO BARQUINN
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Betto, o seu equilíbrio emocional e a sua capacidade de interagir com o mundo, fica claro nos seus textos. Você é capaz de criar personagens tão humanos, que o leitor fica achando que eles são de verdade. Que mente grandiosa você tem, menino! Vida Longa ao Rei! Parabéns!
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