AVE MARIA
Desde os dez anos de idade que Açucena passava os natais sentada na porta da igreja. Filha de pais viciados em drogas, a sua romaria era passar de abrigo em abrigo, até não ter onde ficar. Às vezes fugia. Noutras, fingia: alegria, divertimento, amor, doçura, família, agradecimento, louvor. Apanhara muito da vida. Apanhara muito dos pais. Tinha vezes que era surrada por uma pedra de crack. Noutras: por um grama de cocaína. Conseguiu escapar das surras e das drogas, graças a sua força de vontade. Um dia apanhou tanto que o sangue secou-lhe o pranto. Um dia apanhou tanto que a escuridão cegou-lhe a alma. Um dia apanhou tanto que a barra de ferro quebrou-lhe os ossos. Um dia apanhou tanto que o silêncio calou-lhe a boca. Toda quebrada, viu que os pais estavam tão drogados, que esqueceram de fechar a porta. Desesperada, buscou forças sabe-se lá onde, e arrastou-se porta à fora. Fugiu. Angustiada, buscou forças sabe-se lá onde, e arrastou-se rua a dentro. Desapareceu. Porta à fora. Rua a dentro. Assim ganhou o mundo e perdeu-se no submundo. Mas foi salva por uma irmã de caridade, que levou-lhe para um orfanato, e lá deu-lhe calor, afeto e guarida. Tão agradecida, abraçou a irmã como quem abraça um prato de comida. Porque sabia que pela primeira vez na vida, alguém a tratara como gente. Viveu no orfanato dos quatro aos dezoito anos. Fora criada pela irmã Maria de Nazaré e suas missionárias. Maria de Nazaré era da Ordem dos Carmelitas Descalços. Dona de uma alma tão grande, que mal cabia no mundo. Maria de Nazaré amava a todos e a cada um, como se fossem únicos. Flutuava entre o céu e o paraíso como uma folha de papel. Viera à Terra com a missão de praticar o bem. E agarrara com tanta força o destino que Deus lhe dera, que passara a vida distribuindo sorrisos. Era adépta da terapia do beijo e do abraço. Por isso todas as manhãs, as crianças do orfanato faziam fila para receber o seu carinho. Açucena, a menina dos olhos claros e sentimentos raros (saída do poema “Dois e Dois são Quatro”, de Ferreira Gullar) fora salva por ela. Pelo afeto que saía de suas mãos, Açucena ganhara uma segunda chance na vida. Agarrara com unhas e dentes aquela mão, como se fosse o passaporte de entrada no céu: E era mesmo. Agora Açucena era uma criança feliz: estudava, amava, rezava, corria, brincava. Tinha dias e noites. Tinha objetivos na vida. Quando perguntavam o que queria ser quando crescer, ela respondia: “gente”. Quando perguntavam o que desejava para si, ela dizia: “sorrir”. Mas mesmo cercada de tanto amor, não esquecia do passado. Às vezes era tomada pela melancolia. Em outras: por um acesso de alegria. Quando voltava a si: era capaz de praticar milagres. Gostava de histórias azuis. Gostava de blues. Sempre rimava amor com amor: Nunca dor com dor.
O tempo passou e um dia a irmã Maria de Nazaré morreu. Suas últimas palavras foram: “Seja feliz, menina. Quando sentir saudades de mim, vá à igreja. Lá estarei te esperando, porque lá é o meu lugar”. Açucena não chorou. Nem sequer lacrimejou. Sabia que Maria de Nazaré voltara para o céu, de onde jamais devia ter saído. Na Terra era uma estranha no ninho. Embora fosse a alma do mundo, caridosa que só, seu lugar não era aqui. Fora embora para fazer outra criança sorrir. Fora embora para viver na Casa de Deus: onde não existem órfãos. Porque lá todos tem Pai e Mãe. Assim Açucena, a menina da porta da igreja, ficava ali sentada, esperando Maria de Nazaré aparecer. Todo natal as duas se encontravam. Todo natal, a irmã surgia na igreja com uma rosa na mão. Ficavam abraçadas até à meia noite do dia 25 de dezembro. Depois, Maria de Nazaré ia embora, como agora: acabou de partir.
Açucena sou eu. Uma menina-mulher, acostumada a passar a vida nos braços do Criador. E Maria de Nazaré é Maria: Mãe dos filhos de Deus.
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