RATOS DA ESCRAVIDÃO




Era uma pessoa ruim. Dava para ver nos seus olhos. Era o tipo de gente que quanto mais envelhece, pior fica. Era rancoroso, vingativo, preconceituoso, racista. Uma afronta para a humanidade. Vinha de uma família de mil e seiscentos anos. Seus ancestrais chegaram ao Brasil pouco depois do descobrimento. Uma vez instalados na colônia, e com as burras cheias de dinheiro, daqui tiraram tudo: ouro, madeira, animais silvestres; tudo. Aqui permanecem até hoje, através de seus descendentes, que como ele; o tal entrevistado, fazem pouco de nós. Mas deixe-me apresentar-me. Sou jornalista. E como tal, fui ordenado pelo meu chefe, para entrevistar o autocentrado sujeito. Alguns leitores querem saber como é a vida nos grandes salões da burguesia. O tal senhor era o baluarte dessa gente falida. Vivia de pose… Não tinha eira nem beira, mas botava banca de bacana. Eu estava ali para entrevistá-lo. Então, liguei o gravador, e ele começou a falar. O tema era livre. Como quem não quer nada, toquei num assunto, que segundo o meu editor, deixaria o entrevistado irritado: “A ascensão do negro na sociedade brasileira”. A pergunta caiu como uma bomba: o que o senhor acha da ascensão do negro na sociedade brasileira? Eu, como bom repórter que sou, não perderia a chance de encostar o tal sujeito na parede. Dedo posto na ferida, começamos a entrevista.

Feita a pergunta, ele disparou dizendo que não tinha nada contra os negros. Só não ia admitir que alguém com um passado de subserviência, de ignorância e de pobreza, tivesse livre acesso ao salão daqueles que nasceram com o sangue azul. Inconformado, bradava: “Era só o que me faltava… ver um descendente de escravos, cuja mãe é uma ex empregada doméstica, e o pai, um borra-botas, se comportar como se fosse um de nós! Pois se um de nós fosse, o mundo estaria perdido. Isso mesmo… se um acéfalo desses, fosse um de nós, o mundo já teria acabado. Quando abriram as portas da senzala, os abolicionistas nos afrontaram demais! Meu bisavó morreu com essa mágoa no peito. Cuspia rios de sangue toda vez que alguém tocava no assunto. Não o conheci pessoalmente, é óbvio, mas meu avô me contou tudo que o velho lhe dissera. Por mim, esses negros estariam mortos e enterrados a muito tempo… Se houvessem deixado nas mãos do meu bisavô, tudo estaria resolvido. Mas não… Retiraram o poder dos barões, e o país virou essa balbúrdia… Quisera eu ter nascido no tempo do império… Quisera eu! Onde já se viu, alguém de pele escura, se dar bem nesse mundo? Aqui é Brasil, minha gente… Não tem disso, não. E a sociedade, onde fica? E as boas maneiras? E a ética? E a moral? E os bons costumes? Jogamos tudo no lixo?! É imoral conceber um tempo em que essa gente chegará ao poder… É amoral pensar uma coisa dessas… Um absurdo desses será o Apocalipse! Aí sim terá chegado o fim do mundo… Desde quando gente de bem como nós, deve se misturar com essa gente de cor? Essa gente mal sabe falar! Nem sabem o que é português? Matam a nossa língua… É isso que eles fazem… Vermes! É isso que eles são… Falam gíria, palavrão… E ainda tem gente que sorri para a chamada ‘nova classe C’… É o fim da picada! Usam um dialeto das ruas, que envergonha os bem nascidos como nós… Mal sabem ler e escrever, e se dizem poetas. Só se for poeta do mangue! O que querem que façamos? Que abramos a porta das nossas casas, e digamos: entrem, meus filhos! É isso?! Jesus, Maria, José! É um despautério atrás do outro… Nunca! Ouviram bem?! Nunca! A minha resposta é nunca! Nem que passem por cima do meu cadáver! Nem que passem cem anos, vou admitir uma coisa dessas… Se mil vidas eu tivesse, mil vezes negaria a existência desses enjeitados! Desde quando o povo tem direitos?! Povo é povo, ora bolas! A gente manda, ele obedece! Onde já se viu uma coisa dessas… Agora tenho eu, que gastar os meus neurônios, com essa gente preta. Desaforo! Era só o que me faltava… De onde vem essa gente? Da África?! Do morro?! Da favela?! Da senzala?! Nem árvore genealógica essa gente tem… Eu venho de uma família de mil e seiscentos anos… Respeitem os meus cabelos brancos! É a memória dos meus ancestrais que estão manchando com esse tal liberalismo social. Hoje só se fala em inclusão… Deviam incluir vergonha na cara ao debate! Onde já se viu… Baderneiros é o que eles são! Por isso digo e repito: mas é nunca que vou aceitar uma coisa dessas! Errar é humano, eu sei. Agora, compactuar com o erro, aí é querer muito de mim. Não compactuo com a indecência humana… Branco é branco, preto é preto… e estamos conversados! Desde que o mundo é mundo é assim… É imoral querer comparar negro com branco… Água e óleo se misturam?! Pois então… Não há ditado que diz que ‘quem se mistura com porcos, farelos come?’ É isso que querem para o nosso povo: um futuro inglório? Vivemos muito até aqui, minha gente… Fizemos muito por essa terra… Não queiram banalizar o que levamos séculos para construir… Cada macaco no seu galho, por favor. Ordem no recinto! Veja a bandeira… lá está escrito: ‘ordem e progresso’, e não balburdia e miscigenação… Pobreza, pega! Não quero um indivíduo desses tocando com seus dedos pretos no que é meu. Vai que mancha… Vai que quebra… Vai que suja a minha prataria com essa mão imunda… Não é o que dizem por aí? Que ‘preto quando não suja na entrada, suja na saída?! Então… sejamos assépticos, meu povo… respeitemo-nos uns aos outros. Por favor… muita calma nessa hora! Hoje em dia só se fala dos negros… É negro isso, negro aquilo… uma perturbação. É a plebe ignara dos trópicos querendo se dar bem nas costas da aristocracia… Cuidado! Quem nunca comeu melado, quando come, se lambuza. Não dou cinco minutos para esses fanfarrões enfiarem os pés pelas mãos! É cota para isso, é cota para aquilo… Até na universidade essa gente quer entrar… O governo é culpado… Esses tais democratas é que achincalham a República! Ficam dando trela para morto de fome, depois o país cai no atoleiro, aí eu quero ver… Depois não digam que eu não avisei! Estão dando asa à cobra… Onde já se viu… É cantor negro, é ator negro, negro protagonista de novela, negro intelectual, negro pensador tem até negro doutor! Uma temeridade… Onde é que isso vai parar, meu povo?! É negro Procurador da República, negro ministro, negro presidente do Supremo Tribunal Federal, negro professor universitário… Professor de quê, minha gente?! Se mal sabem ler e escrever…  Até na literatura essa gente quer entrar… Já não bastou termos que engolir Machado de Assis e o tal Cruz e Souza? Pois então… chega… Até presidente negro esse mundo tem, minha gente… Daqui a pouco vão fazer o mesmo por aqui… é o cúmulo do absurdo… Negro, Senhor Presidente… Socorro!”

A entrevista terminou ali. Não perguntei mais nada. Apenas enxuguei os olhos e saí. Aquele homem foi a pior coisa que já me aconteceu na vida. Chegando em casa, passei a entrevista para o papel, não esquecendo sequer uma vírgula. Aquele dia era uma quarta-feira e a entrevista sairia no domingo. E assim aconteceu. Na primeira página do jornal, em letras garrafais, eis a manchete:

“Um pensamento, há muitos anos, mau-caráter demais”.

FIM



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