Liiines






Ele morava no subúrbio ao lado da estação de trem. E passava os dias imaginando quando sairia dali. Era uma vida moldada à chão batido: estéril de sentimentos decentes. Por horas: viva alma  passava. Por horas: a agonia de não ver gente. Vez por outra vinha uma poeira de cegar. Uma ventania que batia seca nas costas. Às vezes via-se alguma coisa arrastar-se atrás de uma árvore. O céu era cinza. O mato quente. O ar tinha cheiro de carne. A água potável era mais salgada que a do mar. O tempo parou de passar. Parecia que ali nem os segundos tinham vontade de nada. Ele esperava por coisa alguma. O que queria era sair dali o quanto antes. Ficava melancólico toda vez que pensava na vida. Os pais, dois gravetos sujos de graxa, impludiram de tristeza. A irmã: parecia que tinha perdido o gosto pela vida. Passava o dia rasgando jornais. O gato enfiara o focinho na terra e parecia que dali jamais sairia. O cachorro não latia mais. Ah, já ia me esquecendo: Tinha um velho pássaro encarcerado numa gaiola enferrujada. Seu nome era Bob. Bob era esquisito. Tinha o aspécto sujo, asas quebradas, bico quadrado e pescoço torto. Olhar para aquele pássaro dava medo. Olhar no espelho também. Parecíamos velhos demais para quem não passava dos duzentos anos. A água salgada daquele lugar estava acabando com a gente. Aquele marasmo pertencia a um rancho. Eu acho. Tenho dificuldade de lembrar daquele tempo. Alguma coisa em mim morreu no dia em que fui defenestrado. Devo ter apagado o passado, porque só me lembro dos trens passando, loucos acenando, e uma vontade imensa de sair correndo. Mas eu falava dele e não de mim. Deixe-me continuar.

Lembro-me como se fosse hoje, do dia que o vi partir. Estávamos  vazios. O almoço saíra mais tarde, porque ninguém quis cozinhar. Matamos uma galinha: que era só osso e pena. Fizemo-la ao molho pardo. Grapefruit de sobremesa. Um pouco de arroz azedo para acompanhar. A galinha deixou-nos a todos: introspectivos. Eu quis morrer. Mamãe ficou calada sem saber o que dizer. Papai trancou-se no quarto e descascou uma batata. Minha irmã, como sempre, ficara rasgando jornais. O gato: com cara de pato. O cão: velho como um ancião. O pássaro: com pena de mim. Assim foi a tarde do dia que ele se foi.              

Quem sou eu nessa história? Uma linha. Um fio. Um elemento que compõe os tecidos. Em matemática sou o sinal gráfico ‘plica’. Em geometria sou usado para exprimir o minuto. Em matemática sou eu quem exprime a deriva de uma função. 


Sou uma curva, uma reta e um círculo. Sou uma linha aérea ou quem sabe uma linha ferroviária. Online, sou um anglicismo advindo do uso da internet, sendo “em linha” uma tradução literal de ‘online’, pouco usada no português. Mas na maioria das vezes estou offline. Ou simplesmente, “fora de linha”, em algum ponto de interrogação: fora da área de cobertura. Não respondi a sua pergunta, não é mesmo? Desculpe-me, mas não sei quem sou. A única coisa que me lembro é que morava no subúrbio ao lado da estação de trem. E passava os dias imaginando quando sairia dali.





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Comentários

  1. Você é o máximo Bettinho! Amei o texto, meu rei! Amei!!!!!!

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  2. Genial, Betto! Você é o cara, leke! Meus parabéns!

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  3. Cara, você escreve muuuuuuuuuuuuuuuuito bem! Inteligente, contemporâneo, fantástico! Não tenho palavras para expressar o quanto gostei de conhecer o seu blog. A partir de hoje sou seu fã! Abs!

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  4. AMO ESSE BLOG! MUITO BOM!!!

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