BALADA DA ARRASADA







Clara era tão pobre, que pediu de presente de natal, um prato de comida. Depois de ficar dias com fome, sentiu-se mal, caiu num sono profundo e teve um sonho:

No sonho Clara era uma princesa, dessas de contos de fadas. Tinha um irmão, cujo nome era engraçado de pronunciar: Aabran  aquele que tem garra e força. Aabran era um bom menino, mas como todo menino, queria ser rei. Achava que se tivesse poder e dinheiro, poderia dominar o mundo. Sonhava com carros importados, casacos de pele, mulheres aos montes, castelos de ouro, juventude eterna e beleza infinita. Aabran tinha o espelho da vaidade grudado no rosto. Clara amava o irmão. Por ele era capaz de fazer do inferno o paraíso. Passava as tardes bordando. Como no reino não tinha casacos de pele, pois era proibido tosquiar animais, tecia para o irmão um casaco de lã. O irmão não gostava, tinha alergia a pelo sintético, mas como casaco é casaco, e para o frio cobertor é luva, Aabran usava. Um dia o rei morre, e deixa no trono, a rainha Clara. Aabran fica furioso e jura que um dia irá vingar-se da irmã. Para ele uma mulher no poder, era o mesmo que deixar a raposa tomando conta do galinheiro. A essa altura não era mais um menino. Era um homem. E para um homem que deseja mulheres aos montes, não é difícil imaginar que a nenhuma devia respeitar. Os anos passaram e Clara tornou-se uma grande rainha. O súditos a adoravam. Distribuíra casa, custiara estudos, levara saúde, saneamento básico e rede de esgoto para todos. Passava os dias resolvendo problemas. E a noite: orava. Não tinha tempo para dormir, porque um dia percebera todo o sofrimento do mundo. Desde então, dormir, não mais. Era gente passando fome de um lado,  alguém morrendo de frio do outro, alguns perdendo seus pares, outros necessitando de lares, e muitos que eram tantos, que esqueceram de ser singulares. Era tanto sofrimento no mundo, tanta tristeza, tanto grito, tanta dor, tanta falta de gentileza: que Clara rezava, pedindo a Deus um pouco de delicadeza.

Aabran quanto mais velho ficava, mais à irmã odiava. Às vezes pensava em matá-la com veneno de cobra. Noutras, afogá-la numa piscina de feno. Tinha tantas ideias: uma pior que a outra. Sonhava em matá-la de fome ou de água na boca. Quando não aguentava mais ver Clara vencer, convidou a irmã, que a essa altura já era uma anciã, para assistir “O Quebra-Nozes”:

No balé, Clara é uma menina apaixonada por um quebra-nozes. O amado veste-se como um soldado. Tem as pernas e a cabeça enormes: parece uma figura humana vinda do céu. Clara tem um padrinho mago, que de tanto a garota pedir, dá de presente a ela: o quebra-nozes adorado. No natal o quebra-nozes chega com o coração abarrotado de amor. Herr Dosslmeyer, padrinho de Clara, é um exímio fabricante de relógios. Além de senhor do tempo, de tic-tac em tic-tac, faz quebra-nozes para vender. Clara ao ter seu amado nas mãos, percebe que sempre sorrindo, nozes ele põe-se a quebrar. Mas Aabran, que no sonho de Clara é Fritz (o irmão invejoso), quando o quebra-nozes resolve usar, faz dele pouco caso, quebrando tudo a sua volta: dando azo ao azar. De tão mau uso que faz, quebra-lhe o braço em muito lugar. O juíz Stahlbaum, que no sonho de Clara é o rei, ordena a Fritz, que para Clara é Aabran, que nunca mais toque no quebra-nozes, sob pena de ficar de castigo. Vendo o quebra-nozes com um dos braços quebrados, Clara recolhe-o do chão, dá um beijinho na bochecha, um abraço apertado, um cheirinho na mão, canta uma musiquinha de natal, começa o quebra-nozes ninar, e antes dele dormir, põe-se a sonhar.

No sonho, Clara está de volta ao sótão onde escondera o quebra-nozes.  Havia feito isso, com medo que o irmão o quebrasse novamente. Ao entrar no sótão, encontra-o repleto de ratazanas gigantes. A casa transformara-se num bosque infernal. Os móveis, que eram produto de desmatamento, agora eram árvores frondosas. Tudo ali parecia fruto de um desastroso pesadelo: menos as árvores. Para espanto de Clara, o quebra-nozes havia se transformado num soldado de verdade: mais humano impossível. O Quebra-Nozes era agora um coronel à frente de seu exército. Num piscar de olhos, começa uma guerra entre os soldados e as ratazanas. Os soldados depois de horas de combate, quando estão quase perdendo, têm a ideia de jogar em cima dos ratos: uma infinidade de sapatos. Os soldados vencem a batalha. As ratazanas fogem para nunca mais voltarem. O que era pesadelo: vira uma estufa de conto de fadas. O que era Quebra-Nozes: vira um príncipe encantado. Felizes da vida, Clara e o príncipe viajam para o Reino das Neves. E quando lá chegam, o príncipe apresenta Clara: ao rei e a rainha.


Depois de valsarem inúmeras composições de Tchaikovsky, Clara e o Quebra-Nozes se casam. Clara está linda: iluminada por um vestido de flores. O Quebra-Nozes veste-se com um belo fraque inglês, adornado de sol, vermelho, verde, branco, azul e um leve toque de primavera. Clara e o Quebra-Nozes despedem-se do Reino das Neves. Animados, seguem para o Reino dos Doces. No meio da estrada, num lugar chamado Caminho da Limonada, encontram pastéis de todos os reinos do universo, que dançam e cantam com eles.

Após dormir algumas horas, tomada pelo transtorno de personalidade   limítrofe, Clara acorda e se dá conta que tudo que vivera, fora um sonho.  Desiludida, a menina chora copiosamente. Inconformada, decide matar-se. Mas antes resolve despedir-se do padrinho, que tinha ido  embora, enquanto ela dormia. Chegando à casa do tio, Clara descobre que quem a aguardava, era a causa da sua tristeza e a consequência da sua alegria: O Quebra-Nozes.  

Clara acorda faminta e descobre que tivera um sonho dentro de outro sonho. Arrasada, olha para os lados e não vê nenhum prato de comida. Desesperada, tenta gritar, mas a miséria não deixa. Clara dá seu último suspiro, entrega a Deus uma prece, fecha os olhos e morre de fome.




BALADA DA ARRASADA™ ©  copyright by betto barquinn 2011
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Comentários

  1. Muuuuuuuuuuuuuuuuito bom, Betto! Menino, você é 10! Bjs!

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  2. José Caetano do Nascimento26 de agosto de 2011 às 08:55

    Magnífico! É o gênio de Betto Barquinn mostrando a sua força. Transformar esse balé em algo tão contemporâneo, e ao mesmo tempo atemporal, é a prova de que você é um escritor de mão cheia. Vida Longa ao Rei! Abraços!

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