NOT FALLING




Ele corria o dedo à máquina como se o ato de escrever fosse catar milho. Era obediente e virtuoso. Dizia sim à vida com a delicadeza de quem está preso em si mesmo. Havia sido educado para ser dócil como um cão doméstico, e compreendia isso. Mas submissão para ele tinha outro significado: resignação. Não era o mesmo que é para o resto do mundo. Aceitava a vida do jeito que ela veio: embrulhada em papel de pão. Entretanto, para não contrariar as expectativas alheias, fingia não incomodar-se com aquilo que a sociedade chama de sobriedade. Sobriedade desconcertava-o. Dava-lhe dor de barriga. Todavia, seguia de cabeça erguida, porque a aceitação era o que ligava-o a esse mundo. Onde preto é preto, branco é branco, pobre é pobre, rico é rico, e miserável é miserável. Feito água e óleo, sim senhor.

Nascera numa família muito pobre. O pai, catador de lixo, trazia para casa o fruto do pouco que ganhava: pão, salsicha, um quilo de arroz, um mão de feijão, uns pedacinhos de carne, e água. Às vezes tinha farinha de mandioca: aí a mãe fazia farofa de ovo, se ovo tivesse. Se não, era farinha pura. Farinha pura e um copo d’água. A mãe, dona de casa prendada, tinha toque de Midas. Transformava a pobreza em melado de cana, suco de laranja, bolinho de chuva. Isso nos tempos de bonança. Porque na época das vacas magras, fazia do nada algo que pudesse servir no jantar. Era um lugar feliz aquela casa de um cômodo. Ali havia amizade. Todos se amavam de um jeito discreto. Não havia espaço para gestos esfuziantes. Amavam-se no resguardo do toque. Sabiam que tudo que havia era abaixo do necessário. Contudo, tinham uns aos outros, e isso em qualquer fase da vida é o suficiente, para ao menos sorrir, nem que seja de vez em quando. Porque tem gente que tem muito dinheiro e não tem quem amar. Ou se tem, por ele não é amado: admirado. Eles, não. Tinham tudo que uma pessoa precisa para ser feliz por dentro. Por fora, eram pão bolorento. Por dentro: bela viola.

Ao correr o dedo à máquina, ele pensava nessas coisas. Nos tempos de extrema penúria. Agora, no vazio do quarto, ele era absoluta solidão. Havia enricado, dizia a mãe. O dinheiro trouxe conforto para o corpo. Com ele pôde dar uma vida melhor ao pais: àqueles a quem amava. Mas conservava na alma um certo estranhamento. Era visita em sala própria. A maciez das penas de ganso das almofadas inglesas, que cobriam o sofá renascentista comprado em Paris, eram obras de arte para nádegas acostumadas a sentarem-se em chão de terra batida. O que para ele, era um exagero. Por isso, passava o dia trancado no quarto: escrevendo, revisando, pesquisando o passado. Não era difícil perder a hora, elaborando uma frase: aquele era o parágrafo de uma vida.

Escrever fazia-lhe bem. Muito bem. No livro encontrava o porto seguro. Fora ele que trouxera-lhe a vida que tem hoje: casa, carro, plano de saúde, comida boa à mesa. Entretanto, lá no fundo, ele ainda era aquele menino de pés descalços, que via o pai voltar da lida com as mãos abanando. A mãe, com o sorriso no rosto, esperava o pai ao portão. Os dois abraçavam-se, trocavam olhares; não raro surgia-lhes uma lágrima aos olhos: diziam ‘eu te amo’, e entravam. Era assim sempre. Uma infância marcada por lágrima e amor. Havia muitos abraços e trocas de olhares. Havia a compreensão. Por isso não se casara. Nenhuma mulher, por mais doce que fosse, chegaria à doçura da mãe. Aquela era doce como maçã do amor. Delicada, como rosa em botão. A riqueza não mudou um grama daquela mulher. Era a mesma que era na pobreza: abençoada por fora e por dentro. Hoje, uma dona de casa da alta sociedade. Ontem, uma dona de casa do lixão. Muita novidade, é verdade. Mas para esse tipo de gente, que sabe como tirar leite de pedra, não há dinheiro que pague.

Os dias passavam lentamente. E ele ali, catando milho à máquina; pois de computador não gostava: como se o ato de escrever fosse um descobrimento para o único dedo, que servia-lhe para imprimir a letra ao papel.  


                  
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