OLHA PRO CÉU






Estávamos reunidos para a primeira noite de leitura de “O Mercador de Veneza”. O projeto, que era a nossa menina dos olhos, levava à comunidades carentes: a Obra de William Shakespeare. Era uma iniciativa de um pequeno grupo de atores, de cujo qual eu me orgulho de participar, de popularizar as peças desse gênio da literatura mundial. Já tínhamos encenado algumas das trinta e sete peças do dramaturgo, entre elas “Romeu e Julieta” e “Hamlet, Príncipe da Dinamarca”. Agora chegara a vez desta preciosidade do talento humano, que retrata sentimentos tão nobres, quanto a alma do nosso autor.

A sala estava lotada. Vieram tantos jovens prestigiar o nosso encontro, que o teatro ficou pequeno para tanta gente. Tivemos que recorrer à cadeiras extras, mas como era de se esperar, muitos jovens tiveram que sentar-se no chão. O inicial incômodo, já que não couberam todos com o conforto que gostaríamos que tivessem, deu lugar ao prazer de respirar arte e cultura ao mesmo tempo. Sabedores de que a alma necessita do belo e do extraordinário para sentir-se contente, sabíamos que aquela noite seria inesquecível. Estávamos todos imbuídos do sentimento de troca, e o bem querer ficou evidente quando ouvimos as três batidas de Molière, a luz se apagou, e a agitação deu lugar ao silêncio.    
    
“O Mercador de Veneza” é uma Obra imprescindível para qualquer sociedade. Ainda mais quando a platéia é feita de jovens, que são indivíduos em formação, e como futuros cidadãos, precisam ater-se a sentimentos básicos para a convivência social, aperfeiçoando o espírito com solidariedade, com a capacidade de perdoar, e com o exercício da honestidade e do respeito ao próximo. Em síntese, este é o enredo da história: a caridade.

A leitura começa apresentando os personagens da trama. William Shakesperare nos conta a história de um jovem mercador de Veneza, de nome Antônio, que guiado por seu humilde coração, empresta dinheiro aos menos favorecidos, sem cobrar juros, inclusive esticando o prazo para o pagamento, caso o indivíduo não tenha condições de quitá-lo na data combinada. O jovem é tão bondoso, que em alguns casos, perdoa a dívida. Sempre age com o bom senso próprio daqueles que enxergam a vida, não como algo passageiro que termina no túmulo, mas com olhos de eternidade. Antônio tem como melhor amigo, outro jovem adorável chamado Bassânio, cavalheiro veneziano que ostenta um título de nobreza, mas que devido a vida que leva, repleta de luxo e exageros típicos de sua casta, acaba na miséria. Antônio, sempre que pode, empresta-lhe algum dinheiro. Como as retiradas eram constantes, Bassânio deve ao amigo uma verdadeira fortuna. Contudo, possuidor de uma alma generosa, Antônio jamais cobrara um centavo sequer. A dívida ficara para pagamento à perder de vista, caso algum dia, Bassânio pudesse saldá-la. Isto em nada abalara a amizade dos dois. O que Antônio fazia por Bâssanio, era o que o amigo faria por ele, caso tivesse recursos financeiros para tal. Os dois amavam-se como irmãos.

Acontece que lá em Veneza também vivia um senhor de nome Shylock, que emprestava dinheiro a juros altíssimos. Era detestado pela sociedade local, pois comportava-se com tamanha crueldade no ato da cobrança de suas dívidas, que levava muitas famílias ao desespero. Antônio, incomodado com os desmandos do agiota, chamava-o de mau caráter e onzeneiro imoral. Shylock odiava-o, não só pelas palavras depreciativas que viam da alma de Antônio, mas pelo fato de este emprestar dinheiro a todos, sem se importar se lhe pagariam ou não. De certo modo eram concorrentes no mesmo negócio, já que os dois concediam empréstimos, mas a diferença entre os dois era óbvia.

Certo dia, Bassânio procura o amigo Antônio, e solicita-o um novo empréstimo. Bassânio intentando casar-se com uma rica dama da Corte, de nome Pórcia, pede ajuda ao amigo para levantar dividendos suficientes para desposar a moça. Naquela época, o dote era comum nas sociedades ditas civilizadas. Antônio não dispõe dos três mil ducados que Bassânio precisa, e pede-lhe que aguarde alguns dias, até que este receba algumas mercadorias, e aí sim, de posse do dinheiro, repassaria ao amigo. Contudo, devido à urgência de Bassânio, Antônio propõe ao amigo que os dois dirijam-se ao escritório de Shylock, e peçam um empréstimo a ele. Assim, quando os navios chegarem com as mercadorias, Antônio paga ao agiota, e todos ficam felizes.      

Passado alguns minutos de total constrangimento, Shylock empresta o dinheiro a Antônio, dizendo que não lhe cobraria juros, desde que este se comprometesse a deixá-lo arrancar quatrocentos e cinquenta e três gramas de carne (que equivale a uma libra) próximo ao coração. Mesmo a proposta sendo absurda, já que isso é o mesmo que entregar-se à morte, Antônio aceita. Esperançoso de que poderia pagá-lo antes do prazo determinado, assina o documento. Bassânio, ao perceber que o amigo arriscara a vida por ele, tenta removê-lo de tal insanidade. Entretanto, o contrato é lavrado em cartório, e se no dia marcado, Antônio não saldar a dívida, corre risco de morte.  

Com o dote nas mãos e o restante que custiaria a viagem, Bassânio parte para a casa de Pórcia. Leva consigo seu fiel servidor, um cavalheiro de nome Graciano. Chegando em Belmonte, um lugarejo próximo à Veneza, os dois instalam-se nas residência da moça. Passado um breve tempo, Bassânio e Pórcia ficam noivos. A dama jura-lhe amor eterno. O nobre explica-lhe que se os dois casarem-se, ela escolherá como marido, um homem pobre. Ela diz não importar-se com isso, e promete que daquele em dia em diante, ele seria dono de toda a sua fortuna, de sua alma, e de seu coração. Graciano admira-se do amor de sua vida ter um coração tão cheio de graça. De certo os dois nasceram um para o outro, porque o rapaz também é um espírito de bom coração.

Ao aproximar-se o dia do casamento, eis que chega uma carta de Veneza, escrita de próprio punho por Antônio, informando que chegara o dia do pagamento da tal dívida, e que havendo ocorrido um problema com os navios, as mercadorias não chegaram ao porto. Sendo assim, a dívida não foi paga, e Shylock exigia o pagamento da libra de carne. Bassânio desespera-se, pois sabe que o amigo está vivendo aquele infortúnio por sua causa. Na carta, Antônio despede-se da vida, porque o dia do pagamento da dívida, será também o dia de sua morte. Bassânio conta toda a história à Pórcia, que entrega-lhe o equivalente a mil vezes o valor do empréstimo, e eis que o jovem parte para Veneza, com o intuito de salvar a vida do amigo. Antes de partir, Bassânio e a jovem se casam, Graciano e Nerissa, dama de companhia de Pórcia, fazem o mesmo. As senhoras dão de presente aos seus esposos, um anel, como um regalo para suas almas feridas. Os dois prometem que jamais irão desfazer-se daquele presente genuinamente abençoado por Deus.

Com a partida do marido, Pórcia tem a ideia de consultar um primo, que é advogado, para saber o que fazer diante deste processo. O primo aconselha-lhe a enviar um advogado para resolver a questão. Como o próprio, não pode ir, por motivo de viagem, Pórcia pede-lhe a indumentária propícia a ser usada no tribunal, acompanhada de uma autorização para que possa advogar em seu lugar, e parte com sua aia para Veneza, onde esta fará o papel de escrivão na audiência.

As duas chegam ao palácio do duque no dia da audiência. Pórcia apresenta-se como um jovem advogado chamado Dr. Baltazar. Depois de quase duas horas tentando convencer Shylock a poupar a vida de Antônio, vendo que este encontra-se irredutível, e que não aceita o pagamento em dinheiro, mesmo que seja mil vezes mais do que fora emprestado, Pórcia (Dr. Baltazar), diz-lhe que se ao cortar uma libra da carne de Antônio, derramar uma gota de sangue, terá que pagar pela vida do rapaz. Como isso é impossível, corte sem sangue, apesar de extremamente contrariado, Shylock aceita o pagamento da dívida em dinheiro. Mas Pórcia movida pela habilidade que só as mulheres têm, informa ao duque que Shylock não deverá receber um centavo, pois atentara contra a vida de um homem. Shylock é condenado a pagar ao Estado metade de sua fortuna, a outra metade teria que dar a Antônio. No final é acordado, que se Shylock doasse imediatamente, metade de sua fortuna à filha, deserdada por ter se casado com um jovem de nome Lorenzo, a quem Shylock detestava, a sua vida seria poupada. O agiota aceita e parte desiludido.

No final da audiência, o duque parabeniza o jovem advogado pela brilhante atuação no tribunal, e convida-o para um suntuoso banquete de comemoração. Dr. Baltazar pede mil desculpas, mas recusa o convite. Pórcia tinha medo que se ficasse mais tempo em Veneza, passando-se por um rapaz, acabaria desmascarada. Ao partir para Belmonte, no intuito de pregar uma peça no marido, Pórcia exige como pagamento, o anel que o jovem trazia no dedo. Bassânio explica-lhe que o anel era um presente de sua esposa, e que esta ficaria muito aborrecida de vê-lo chegar me casa sem ele. Mas, mediante a insistência do jovem advogado, Bassânio entrega-lhe o anel, e Graciano faz o mesmo, presenteando ao escrevente (Nerissa) o seu. Longe dali, as moças riem-se da peça que pregaram nos esposos, que chegariam em casa sem os anéis.

Em Belmonte, Antônio passa a viver na residência de Bassânio e Pórcia. Depois de alguns dias, Nerissa pergunta ao marido o que fizera de seu anel, Pórcia faz o mesmo com Bassânio, perguntando-lhe onde estava o anel que lhe dera, e vendo-os exauridos de tanta explicação, ambas revelam que Dr. Baltazar e seu escrevente, eram na verdade as damas ali presentes. Todos abraçam-se, e Antônio agradece a Pórcia, por lhe ter salvo a vida. E naquele instante, como por milagre, Antônio fica sabendo que não só os navios chegaram ao porto, como todas as suas mercadorias também. Tudo estava resolvido.

Aquele palácio nunca vivera dias tão felizes. E certamente, os que viriam, seriam banhados de sol.

Quando terminamos a leitura, a platéia estava com os olhos rasos d’água. Todos entenderam que o mais importante na vida é ser solidário. Ali estava o valor da amizade. Ali o amor falou mais alto.

“O Mercador de Veneza” chegara ao fim. Todavia deixou-nos a todos tão felizes, que mudou a vida daquela comunidade e a nossa.

A caridade é assim: quanto mais se doa, mais recebe. Por isso não me recordo, de um só dia, que não tenha sido feliz.

Agora olho para o céu, e vejo que estou cumprindo, a minha missão.




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