COME HOME






Era noite de estreia de “A Tempestade”. Estávamos aflitos porque não recebíamos salário a três meses. Com contas à pagar, e sem um tostão no bolso, o indivíduo fica perdido. E ator não é diferente. Somos cidadãos como outro qualquer. Ainda mais para nós, que vivemos com o sentimento à flor da pele, é sofrível demais. Contudo, e a certo modo, sobrevivíamos. Varrer as dívidas para debaixo do tapete não era nada plauzível. Todavia era a saída que tínhamos nas mãos. “Amanhã iria ser melhor” – pensávamos. Enfim: era noite de estreia. O teatro estava lotado antes das cinco, e o espetáculo só começaria às sete. O burburinho era ensurdecedor. O vozerio riscava o ar: calando o silêncio. Ao terceiro toque, a cortina descerrou-se, e lá fomos nós brindar a platéia com o nosso Shakespeare.

Eu fazia o papel de um velho chamado Próspero. Na primeira cena, estávamos Miranda e eu, a observar um navio à deriva. Quem fazia o papel de Miranda (minha filha na peça) era uma jovem atriz chamada Madeleine. Embora fosse o seu primeiro trabalho em teatro, desempeava com tanto afinco à arte de representar, que se continuasse assim, em pouco tempo seria reconhecida como uma das maiores estrelas do nosso metiê. A peça se passa numa ilha, onde os únicos humanos são Miranda e eu. Vivíamos numa caverna, como naúfragos que tiveram que adaptar-se ao inevitável. Quando por aqui chegamos (agora falarei como Próspero), Miranda era muito pequena. Não lembrava-se de outra face humana, senão a minha. Crescera expatriada de si mesma, fazendo do desterro, a sua pátria. Junto conosco vivia um grupo de espíritos que encontramos na ilha. Um deles era Ariel, um gênio que foi encarcerado ao tronco de uma árvore. Ao ser libertado, contou-nos que fora aprisionado ali por uma velha feiticeira chamada Sicorax. Papel este vivido por minha querida amiga Édith La Mer. A feiticeira havia morrido, dias antes da nossa chegada à ilha. Sicorax aparecia na peça como uma projeção em 3D. Assustadora, fazia com que parte da platéia fechasse os olhos, quando surgia. Tudo muito bem feito. Durante os ensaios, alguns atores ficavam assustados com Sicorax, tal a perfeição da imagem. Ariel era um bom gênio, que agradecido por ter sido libertado, cuidava de nós junto com os outros espíritos. Ali também vivia um mostro chamado Calipã, filho da feiticeira Sicorax, que fazia vezes de serviçal, ajudando-nos no trabalho mais pesado. Calipã fora encontrado no mato. Não era um mal sujeito, contudo a preguiça e a má vontade, faziam dele um servo indisciplinado. Entretanto, graças a presença de Ariel, a quem Calipã era subordinado, no final tudo dava certo. Ariel aterrorizava-o tanto, que o monstro preferia trabalhar dias inteiros à desobedecer minhas ordem, e ter que acertar contas com o geniozinho.

Naquele instante, enquanto observávamos o navio à deriva, começei a contar quem éramos à Miranda. Disse-lhe que fomos parar naquela ilha por conta da traição de Antônio, meu irmão caçula, que queria afastar-me de Milão, onde eu era o Duque. Miranda, que era uma princesa, fora impedida de viver na Corte, passando esses doze anos naquela ilha, entre o nada e lugar nenhum. Antônio arquitetou o seu plano junto com o Rei de Nápoles. Ambos odiavam-me. Antônio porque sonhava em ser o novo Duque de Milão. E o Rei de Nápoles, porque desejava o trono para o seu herdeiro, o príncipe Ferdinando. Sobrevivemos por conta da ajuda de um fidalgo, de nome Gonzalo, que escondeu em nosso bote, provisões que possibilitaram a nossa sobrevivência até aportarmos na ilha. Foram tempos difíceis aqueles. Sair da Corte de Milão e ir parar num lugar inóspito, tendo que viver numa caverna longe da civilização, e ainda por cima carregando um bebê nos braços, fora complicado. Mas graças à ajuda dos bons espíritos e de Ariel, sem contar tudo que Calibã fizera por nós, executando todo tipo de trabalho pesado, sobrevivemos.

A tempestade de que falávamos, fora provocada por mim (exímio conhecedor de magia), que desejava atrair os tripulantes do navio (em especial os passageiros reais, meu irmão Antônio, o Rei de Nápoles, e seu filho Ferdinando). O navio acaba naufragando, todos são jogados ao mar, Ferdinando se separa do grupo, e é dado como morto. A tripulação vai parar num canto da ilha, Antônio e o Rei de Nápoles no outro, restando a Ferdinando abrigar-se perto da nossa caverna. Eu não queria que ninguém morresse. Até mesmo o navio, que aparentemente havia naufragado, estava escondido no porto. Tudo isto era para que meu irmão e o Rei de Nápoles, sentissem na pele o que Miranda e eu sentimos. E aproveitando o acontecimento, eu desejava casar Ferdinando com Miranda, e unir de vez os reinos de Nápoles e Milão. Graças à perfeição do plano, deu tudo certo. Miranda apaixona-se por Ferdinando, que por sua parte enamora-se por ela, nascendo assim um amor imorredouro. Após alguns dias, Antônio e o Rei de Nápoles encontram-nos, fazemos as pazes, e ambos prometem-me devolver o título de Duque de Milão.

Quando libertei Ariel do tronco do velho carvalho, prometi que assim que fosse embora da ilha, o alforriaria. Dito e feito: libertei-o. Por gratidão, Ariel acompanhou-nos até que estivéssemos em terra firme, sãos e salvos em Nápoles. Ferdinando casou-se com Miranda, meu irmão e eu retomamos a nossa velha amizade, e o Rei de Nápoles tornou-se meu aliado eterno.

O espetáculo termina com a chegada da Corte ao porto de Nápoles. Daí em diante todos partem para o casamento de Miranda e Ferdinando. A cortina cerra-se e fim.

Quando deixamos o palco, soubemos que os nossos salários atrasados, seriam pagos naquela mesma noite. Era noite de estreia. Sabíamos que os deuses do teatro não nos deixariam na mão.

Assim chega ao fim mais um episódio da vida da gente. Este dia está quase terminando. O espetáculo foi um sucesso. O nosso dinheiro chegou. As nossas dívidas, finalmente, serão quitadas. Como bem disse Shakespeare: "All's well that ends well". Acreditamos que tudo daria certo: e o melhor aconteceu. Amanhã é um mistério para todos nós. Mas hoje é dia para comemorar.




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