COMME UN FILS






Era o primeiro dia das filmagens de “Conto de Inverno”. Estávamos todos ansiosos, porque sabíamos que se tudo desse certo, este seria o trabalho que mudaria nossas vidas. Aquele que abriria-nos as portas para o sucesso. Embora não fôssemos atores iniciantes, e tivéssemos uma larga experiência em artes cênicas, ninguém nos conhecia de fato. Éramos um pequeno grupo de sonhadores, que fazia da sétima arte, a sua razão de viver. Todos tínhamos formação em teatro: nossa menina dos olhos. Todavia, intentamos fazer cinema, porque a criatividade era tanta, e a vontade de experimentar o diálogo com a câmera era tão grande, que nos vimos impelidos a tentar.

No começo, tivemos todas as dificuldades de quem alça voo pela primeira vez. Imagine nós, a quem Deus não deu asas para voar: querer competir com as aves do céu é um verdadeiro contra-senso. Não queríamos acabar como Ícaro, mergulhados na imensidão do mar. Contudo, como jovens atores que éramos, inexperientes de todo quando o assunto era a vida, não tínhamos em nós a lembrança do medo. Entretanto, agíamos com cautela, porque aquele era o nosso projeto de vida. A maturidade chegou-nos muito cedo. A pesar da pouca idade que tínhamos, sabíamos o que queríamos. E quando falávamos em sucesso, dialogávamos com a ideia de permutação, constância, auto-sustentabilidade. Pensávamos num produto de qualidade, que pudesse ir acima de nós, e que sobrevivesse dali ao infinito, sem conclusão de curso. Representar era o nosso tesouro e o que de melhor sabíamos fazer. Este era o nosso legado para a humanidade: mostrar que pessoas simples e comuns podem chegar onde quiserem, se tiverem talento, força de vontade, espírito empreendedor. Compreendíamos que sem amor não se consegue nada na vida. E como colocamos alma em tudo que fazemos, expargimos tudo que tínhamos de fé, caridade e esperança, para que nossos melhores sentimentos germinassem. Éramos como pastores guiando o nosso rebanho para o caminho do bem. Estes eram por assim dizer: os nossos sonhos. Aqueles que bem direcionados: levariam-nos ao melhor de nós mesmos.

Então, revestidos de um bem querer infinito, estávamos prontos para começar. Uma produção cinematográfica demora meses: até mesmo anos. É um exercício de dedicação. Ao que precede a filmagem em si, vem a preparação, o estudo, os ensaios, o ato de decorar. Tínhamos as nossas falas vivas na alma, a marcação apurada no espírito, e o desejo de seguir adiante, alimentado pela vocação particular de cada um, que dizia ser aquele o momento certo  para nos superarmos.

“Conto  de Inverno” é uma peça de Shakespeare. Como amigo e mentor, nosso William, acompanhava-nos desde os arredores da alma até o âmago do espírito. Éramos os seus fiéis discípulos, obedecendo à risca os seus conselhos. Embora fôssemos um grupo contemporâneo, uma forte onda levava-nos à Stratford-upon-Avon de meados do século XVI ao início do século XVII, onde William viveu. O poeta e dramaturgo inglês, habitava em nós, como uma fonte de água cristalina. E por mais que tentássemos nos afastar de sua influência, permitindo-nos pensar por nós mesmos, voltávamos inexoravelmente a ele, e sua nascente, como diletantes no deserto, em busca de água para beber. Shakespeare, o nosso Oásis Literário, nos abastecia o espírito com tamanho fervor, que fortalecidos de corpo e alma, revisitava-mo-no diariamente.

Na primeira cena de “Conto de Inverno”, vemos Leonte e Hermíone festejarem-se mutuamente. Era o casal real, rei e rainha da Sicília, renovando os votos de amor. Leonte era um rei bondoso, amante das Artes e das coisas boas da vida, enamorado por sua esposa, Hermíone. Este, tinha por sua vez, um grande amigo, o Rei da Boêmia, de nome Polixeno. Depois de anos ausente, um da presença do outro, chega o dia em que Polixeno vem à Corte da Sicília, em visita ao amigo de longa data. Após algumas semanas de relembramentos e folguedos amigáveis, Polixeno resolve voltar à Boêmia e seguir seu reinado. Incomodado com a ideia de ficar longe do amigo, a quem ama como a um irmão, Leonte insiste que fique. Mas não consegue remover Polixeno da decisão de partir. Entristecido pelo horror  de ficar longe dos abraços de Polixeno, Leonte roga à esposa que convença-o a ficar. Hermíone prontamente obedece, e o faz com tanto fervor, que Polixeno não tem outra opção, senão render-se às súplicas da rainha. Vendo que o amigo ficara por insistência de Hermíone, Leonte ao invés de encher-se de luz, deixa-se abater por um inopinado ciúme. Eram as sombras da alma batendo à porta. Naquele instante, o que era amor virou ódio, o que era paz virou guerra, o que era mel virou fel.

Certo de que havia algo de diabólico entre Polixeno e Hermíone, Leonte ordena a Camilo, senhor da Corte e amigo pessoal do rei, que mate Polixeno, usando para isso, um poderoso veneno. Camilo, uma alma caridosa, espírito temente a Deus, poupa a vida do Rei da Boêmia, facilitando-lhe a fuga. Chegando à Boêmia, Polixeno implora que Camilo ocupe um lugar de confiança na Corte, fazendo dele seu senhor de confiança. Camilo aceito e passa ali os próximos vinte anos de sua vida.

Sabedor da fuga de Polixeno e decepcionado com a traição de Camilo, o Rei da Sicília passa a sentir mais ódio da esposa, pela infidelidade presumida. Louco e a mercê dos maus espíritos, Leonte manda a rainha para a pisão, desejando-lhe a morte. Nem as súplicas de seu filho, o príncipe Mamílio, herdeiro presuntivo da Coroa da Sicília, o fez desistir da vingança. Com a mãe na prisão, o príncipe definha até a morte. Um pouco antes da morte de Mamílio, Hermíone deu à luz a uma linda menina, e ainda estava nos derradeiros dias de parturiente. Mesmo mandando consultar o oráculo do templo de Apolo em Delfos, e sabedor de que nada do que suspeitava era verdade, ainda assim, Leonte não acreditou na veracidade do que Cleômenes e Díon, senhores sicilianos de sua inteira confiança, lhe informara: “A rainha era de fato inocente. Polixeno jamais a havia cortejado. A menina a quem Hermíone dera à luz, era sus filha”. Nada o convence. Tomado pela total ausência de bom-senso, Leonte resolve manter Hermíone encarcerada.

Como última tentativa de fazer o rei voltar atrás em suas ordens, Paulina, amiga fiel de Hermíone casada com Antígono, senhor siciliano muito bem quisto pelo rei, procura Vossa Majestade, tendo nos braços a recém-nascida, achando que assim que Leonte visse a filha, teria o espírito quebrantado pelo amor. Nada feito. Leonte repudia a menina, nega-lhe a paternidade, e manda Antígono matar a princesa, deixando-a à deriva num pequeno bote, até que sucumba às necessidades do espírito encarnado. Emília, dama de companhia da rainha, transmite à Hermíone o trágico desenrolar desta história, e amparada por Paulina, a rainha desmaia. Naquele instante, Hermíone fora condenada à morte, a menina expatriada: o caos habitava o reino da Sicília. Com este quadro pintado por intermédio da dor, parecendo que nada de pior podia acontecer, chega a notícia da morte de Mamílio, que definhara de tristeza e vergonha, ao ver o pai condenar a mãe a tão cruel fim. Ao saber do passamento do filho, o rei é avisado que Hermíone não aguentara tamanho sofrimento, e morrera também. Com a morte da esposa, Leonte cai em si, mas já é tarde demais. O oráculo havia dito que se o rei insistisse nessa insanidade, perderia até o último de seus herdeiros. Naquele instante, Leonte deu-se conta do absurdo de seus atos, e tentou saber do paradeiro de Antígono e da filha, contudo o pior havia acontecido. Os dois haviam sumido. Àquela hora, de certo, a princesinha estava morta.

Ao contrário do que Leonte pensava, a menina havia sobrevivido. Quando Antígono deixou a Sicília de navio, fora pego por uma tempestade, indo parar em terras da Boêmia. Ao desembarcar, abandonou a princesinha na praia. Mas ao voltar para o navio, foi surpreendido por um urso feroz, que o devorou em questão de segundos. Graças a providência do Bom Deus, a menina foi encontrada por um pastor de ovelhas. O bom homem dera-lhe amor e carinho, criando-a como se sua filha fosse. A menina estava vestida ricamente quando fora encontrada. Era inevitável negar que aquela criança se tratava de uma princesa. Estava adornada com ouro e prata, coberta de rubis, vestindo a mais pura seda sobre um colar de diamantes. Preso a sua capa, havia um papelucho, que indicava-lhe a graça: Perdita. Assim o pastor soube que aquele era o seu nome.

Perdita cresceu coberta de afagos. O pastor, embora fosse um sujeito simples, soube educá-la com tanto amor, que mantivera nela o porte real. Era um sentimento inato, que revelava que aquela menina tinha pendores de princesa. Enfim, a menina ficara ali, vivendo com o pastor, sem jamais suspeitar da sua origem. O pastor utilizando parte do tesouro encontrado junto à menina, enriqueceu comprando mais ovelhas, e tornou-se um abastado criador. Mudou-se do local onde morava, temendo que se ali ficasse, acabaria tendo que explicar-se por sua repentina riqueza.

Quando estava às voltas com os eflúvios da juventude, Perdita conhece Florizel, filho do rei Polixeno. Os dois acabam se apaixonando. Temendo ser repelido pela moça, caso ela descobrisse que ele era o filho do rei, Florizel apresentou-se com outro nome: Dóriclo. O rapaz passou a frequentar a casa de Perdita, e sob as bençãos do pastor, começaram a namorar. O rei, desconfiado da ausência do filho, que passava a maior parte do tempo na companhia de Perdita, resolve ir junto com Camilo, seu querido fidalgo, ao encalço do filho. Encontram-no na casa do pastor, celebrando a festa da tosquia. Embora estivessem disfaçados de simples vassalos, e ninguém os conhecesse vestidos assim, os “forasteiros” foram convidados a juntarem-se ao festim. Ao descobrir que Florizel havia pedido a mão de Perdita em casamento, Polixeno revela a sua verdadeiro identidade, deixando todos os convivas perplexos. Sem delongas, o rei anunciou que caso o filho insistisse em namorar aquela pobre camponesa, que ordenaria que ela e o pai fossem mortos. Mais uma vez a providência divina atua magistralmente, e Camilo foge com o jovem casal, levando junto o pastor, para a Sicília. Chegando lá procura Leonte, que os  recebe no palácio. Agora em segurança, todos agradecem ao bom Camilo, por ter-lhes salvado a vida. Compadecido com o amor dos jovens, e feliz por Camilo ter voltado, o rei promete protegê-los contra tudo e contra todos.         
  
O tempo passa, e um belo dia, após confirmar as suas suspeitas, o pastor revela, que desconfia que Perdida é a filha desaparecida do rei. Mostrando a todos as jóias, o vestido que a menina usava quando fora encontrada, o colar, e o papelucho preso à capa como o nome da menina, fica claro que Perdita é a princesa da Sicília. Paulina, que durante todos esses anos, continuara a servir o rei com toda a lealdade, confirma que de fato aqueles objetos pertenciam à Hermíone, que adornara a filha com seda e jóias, para que fosse levada à presença do pai. E percebendo que o rei estava mudado, e havia recuperado o bom-senso, Paulina revela a todos que Hermíone esteve sob os seus cuidados durante todos esses anos. A rainha da Sicília estava viva.  

Partiram todos ao encontro de Hermíone, que voltou ao convívio do palácio, ocupando assim o seu lugar de direito.

Dias depois chega Polixeno, que na companhia de Leonte e Hermínia, abençoa a união do futuro Rei da Boêmia com a futura Rainha da Sicília.  

Apesar de todo o sofrimento, Hermíone perdoa o marido, e todos vivem felizes para sempre.

Este foi o nosso filme. Não sei se seguimos com toda a riqueza de detalhes, esta belíssima peça de Shakespeare, mas foi esse o nosso jeito de contá-la. E temos a certeza, que onde quer que o nosso amado William esteja, ele nos abençoará.

A película fez um sucesso tão grande, que não só nos tornamos grandes atores, como passamos a viver da nossa arte. A vida é como um filho. Amor com amor se paga.

Existe coisa melhor do que fazer o que se gosta e ainda ser pago por isso?

Também acho que não.



  
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