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Ele perdeu o movimento das pernas num acidente de carro. Era difícil vê-lo ali parado: de mal com Deus. Dizia que tudo isso era culpa Dele. “Que Deus é esse que deixa um filho seu sofrer tanto?”. Resmungava dias inteiros. Numa noite, bateu-lhe à porta um anjo. Depois de conversarem bastante, o anjo perguntou:

– Qual é o seu problema?

O rapaz respondeu:

– Que diabos é você? Um anjo ou um tonto? Não consegue ver qual é o meu problema? É óbvio! Não posso andar!

O anjo, diplomático que só, continuou:

– Calma, meu rapaz. Essas coisas acontecem.

E o rapaz atacou:

– Se fosse com você, queria ver se teria essa calma toda. Como meu pai sempre dizia: “Pimenta nos olhos dos outros é refresco”.

O anjo bateu o martelo:

– Sabe qual é o seu problema? Você tem a alma aleijada. O problema não é perder o movimento das pernas. É não saber o que fazer com o resto. Aliás, se o seu problema é esse, você é muito mais fraco do que eu imaginava. As suas pernas continuam no mesmo lugar. Pode ser até que você volte a andar. Pior seria se elas tivessem sido arrancadas no acidente. Mas, não. Deus as conservou intáctas. Você ainda não anda, é verdade. E daí? Muita gente tem bem menos que você e leva uma vida normal. Não estou dizendo que é fácil. Pois sei que não é. Você tinha projetos que a partir de agora terão que ser revistos. Contudo, acredito que no campo do talvez sempre haja uma brecha, por onde um corpo franzino feito o seu possa passar. Entenda uma coisa, meu caro. Se a sua vida resume-se à pernas, o acidente deixou muito pouca sequela. Devia ter-lhe levado a vida. Aí sim você compreenderia que cada segundo na Terra é uma chance para recomeçar. Se a vida lhe tirou o movimento das pernas, use o que lhe sobrou. As pessoas costumam chorar pelo que não têm, mas são incapazes de esboçar um sorriso pelo que ainda lhes resta. Pareço duro demais. Entretanto, não posso ver um protegido meu acuado feito um bicho, e ficar parado sem estender a mão para ajudar. Não vim aqui para afagar-lhe a alma, dizendo: coitado. Já deu para perceber que detesto quem tem vocação para vítima. Portanto não espere que eu vá passar a mão na sua cabeça, pois não vou. Vamos, rapaz. Levanta-te e anda!  Não me ouviu? Vamos, rapaz! Segura na mão de Deus e vai!    

Ele deixou cair uma lágrima, botou o pé no chão, levantou da cadeira e pôs-se a andar.

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