TURN ME ON






A morte pegara-lhe de surpresa quando o telefone tocou. Do outro lado da linha era um homem dizendo que seu filho estava morto. Primeiro ela olhou para o teto, depois fez a Deus uma prece. Estava perdida. “O que fazer numa hora dessas?” – pensou. Não era bem uma pergunta: era um pensamento. Não buscava resposta. Ao levantar do sofá sentiu uma vertigem. Era como um tontura de barco. Pensou estar enjoado, fez que ia, mas não vomitou. Ainda mareada vestiu-se correndo. Não queria perder tempo. O filho estava morto no meio da rua. Precisava chamar o rabecão. Tinha sido acidente de moto. “Esses jovens andam rápido demais” – pensou. Queria ter dito obrigado, ao homem que se dera ao trabalho, de pegar o telefone e ligar. Mas não fez isso. O susto foi tão grande, que o máximo que fez, foi desligar. Estava toda amarrotada por dentro e por fora. A roupa lhe caíra como um saco de batata. “Mas que importância tem a roupa numa hora dessas?” – pensou. Nenhuma importância. Achou de bom tom passar um pente no cabelo. Não queria parecer uma louca de hospício. Contudo, era pura perda de tempo. Estava com uma aparência tão ruim, que mais parecia Lady Macbeth. Não pensou dois segundos. Abriu a porta de casa, acenou para um táxi, entrou, e foi dar no cruzamento onde acontecera o acidente. “Foi acidente de moto”- pensou. “Esses jovens andam rápido demais”.

No local do acidente o filho estava coberto por uma folha de jornal. Fazia calor. Aquela cena grotesca embrulhava-lhe o estômago. Já haviam acendido uma vela. Uma senhora rezava um terço. Um senhor fumava encostado num poste. Ela levantou o jornal e disse: “Meu Deus! É ele!”. Cobriu-o como pôde sem verter uma lágrima. Lembrou-se que o filho gostava de poesia. Arrependeu-se de não ter na bolsa um Fernando Pessoa. Todavia não seria isso que atrapalharia o seu dia. Já estava arruinado mesmo: melhor tomar providência. Chamou o taxista que estava rezando ao seu lado, e pediu que corresse em casa, e pegasse na estante o tal Fernando Pessoa. Deu-lhe as chaves de casa. Deu-lhe um trocado pro ônibus. O taxista achou aquilo esquisito, mas fez o que a madame ordenou. Entrou no taxi e ao dobrar a esquina, começou a chorar. “O que uma mãe faz numa hora dessas?” – pensou. Não era bem uma pergunta: era um pensamento. Não buscava resposta.

Na casa daquela senhora tinha uma biblioteca enorme. Muitos livros de Nicolau Maquiavel. Uma estante inteira de Marcel Proust. Em uma escrivaniha num canto da sala, lá estava ele: O Fernando Pessoa. “Acho que é este” – pensou. Era um livro de capa dura, meio difícil de carregar. Colado à capa do livro, tinha um manuscrito à lápis, que dizia: “Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra todos os dias são meus”. 

Ficou ali parado um breve instante, lendo e relendo o pequeno texto. “Isso só pode ser coisa de Fernando Pessoa” – pensou. Posto isto, saiu correndo feito um pé de vento, pois a madame precisava do livro para ler e chorar. O livro intitulava-se “Memórias”. E daquele dia em diante, era de memórias, que a madame iria viver.

Uma semana depois do sepultamento do filho, lá estava ela em seu túmulo, começando a ler poesia. “Antologia de Poemas Portugueses Modernos” – este era o nome do livro. Aquela era a Obra que o filho andava lendo antes de morrer. Melhor seria chegar ao final. Era um poema de Antonio Botto, em homenagem ao amigo Fernando Pessoa, que falecera por aqueles dias. Sendo assim, a madame abriu o livro, e lá estava escrito:

“Se eu pudesse fazer com que viesses,
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão –
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida – esta boémia,
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que êstes meus olhos numa névoa,    
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma: Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio de descrença,
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
– Autênticos patifes bem falantes...
E a mesma intriga: as horas, os minutos,

As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição   
De condenados, hirtos, a viver
Sem estímulo, sem fé, sem convicção...

Poetas, escutai-me. Transformemos
A nossa natural angústia de pensar –
Num cântigo de sonho, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!”.   

Ao acabar de ler o poema, adormeceu ali mesmo, e pela primeira vez, pôs-se a chorar.


      
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