UM HOMEM CHAMADO MADONNA




Ele era um homem esquisito: passava por nós como quem passa delineador na boca. A primeira vista, aquele que vinha ali vestido de festa, era um travesti. Mas não era isso. Ele não era um homem vestido de mulher: era uma mulher que durante muito tempo viveu em um corpo de homem. “Era um varão com alma feminina”, — dizia mamãe. Falava-me isso com um ar de superioridade e um certo despeito. Seu preconceito não enxergava com exatidão os fatos. Não entendia o que era aquele homem. Por isso ao invés de tentar conhecê-lo, precipitava-se em julgá-lo. “Homem vestido de mulher é o fim da picada!”,   exclamava. “É como vestir Papai Noel de Carmen Miranda. Mas ao despi-lo, vemos que a emenda é pior que o soneto! No meu tempo não tinha dessas coisas, não. Homem era homem, mulher era mulher. Agora, não. Homem é Maria e mulher é João”. 


Eu nunca falei nada sobre ele. Nem sequer toquei no assunto. Sempre fui assim: se não entendia alguma coisa, ficava quieto. Deixava que o silêncio me trouxesse a explicação de todas as coisas. Afinal de contas, a vida era dele. O mínimo que podia fazer era respeitar as suas escolhas. Ele dizia-me que sofrera muito. “Viver em um corpo-homem é doloroso demais para alguém que nasceu com a alma-mulher”  confidenciava. Novamente, eu não falava nada. Qual mamãe, ele esperava de mim, mais do que eu podia lhe dar. Respostas a essa altura dariam-me vertigem. Eu já disse isso um milhão de vezes. Já escrevi tantos textos, que eles sempre me confundem. Vão e voltam como uma revoada de pombos. Às vezes estou em um, e acho que estou em outro. Às vezes sou ela, mas penso que sou ele. Porque na verdade, não sou eu quem diz essas coisas. É alguém lá em cima, que habita algum lugar fora do meu corpo, que fala por mim. Sou um espírito em terceira dimensão. Uma homem que conhece um homem chamado Madonna. Um homem tão gentil, que podia ser qualquer coisa: boneca, colher, bicho, tempo, filosofia, asteroide, anjo, prato, esfinge, telefone, mulher. Mas como um sujeito simples: quis ser somente ele mesmo. E o que via no espelho não lhe parecia justo. O que via nos olhos dos outros, menos ainda. Causava um certo estranhamento, eu sei. Deixava as pessoas atônitas. Mas o que importa a opinião dos outros, se nós  sabemos a nossa? O que importa viver por viver, se sabemos que a  felicidade mora dentro da gente? Há tanta vida lá fora Tanto o que descobrir, que deixar-se guiar pelo que o outro pensa, quando sabemos quem somos, seria desistir de viver. Madonna ensinou-me a pensar por mim mesmo. Quebrar a cara que seja, mas assumir que fiz isso ou aquilo, porque tive vontade. Ninguém se conhece por inteiro. Ninguém sabe o que é capaz de fazer no momento de alegria ou de dor. A gente passa a vida tentando acertar. Eu mesmo, que tenho certeza que já vivi muitas vidas, não tenho certeza de nada. Estou em busca daquilo que sou. Estou apenas engatinhando dentro de mim. Sigo nessa caminhada, porque sei que um dia vou me encontrar. Talvez numa virada de lua. Talvez na ponta d'uma estaca. Ou quem sabe: no olho do furacão. Sou muitas coisas, entende? Sou dia de festa, sou casaco de pano, sou ribanceira, sou vendaval, sou fino, sou grosso, sou sinônimo, sou antônimo, sou o que pareço ser, e não sou nada. Aliás, sou como Madonna: Sou revoada.   


















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Comentários

  1. Genial como sempre! Você é um escritor de primeiríssima grandeza. Sinto um prazer enorme em ler os seus textos. Tudo aqui é muito profissional. Morro de orgulho de ter um escritor brasileiro tão competente. Você é 10, Betto! Sou seu fã! Abs!

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