A HERANÇA
Eu já vi gente brigar por dinheiro, mas eles eram psicopatas de carteirinha. A velha morreu e todo mundo quis botar a mão na grana. A briga começou porque um dos herdeiros, o filho mais velho, disse que tinha mais direito na partilha dos bens que o outro: já que cuidara da infeliz até ela bater as botas. Mentira. Nunca visitava a coitada. Vivia arrumando desculpas para não vê-la. Mas foi só a moribunda fechar os olhos, que os cifrões brilharam. No velório, o filho mais novo marcara a viagem que faria com o dinheiro. Antes mesmo da velha ir para os sete palmos de terra, ele já fazia planos: Reformar a casa, construir uma piscina no jardim, comprar um apartamento nas Bahamas, investir na Bolsa de Tókio, ver a cotação do dólar e calcular quanto gastaria em euros, no caso de passar uma temporada em Paris. O irmão, um perdulário venal, tirara a calculadora do bolso para saber quanto sairia perdendo. A mulher do primeiro irmão, já contratando os serviços de uma agência de viagens, inclinou-se no caixão e cuspiu na cara da velha. “Isso é pelos anos que tive que te aturar!” – vociferava entre lágrimas. É claro que ninguém percebeu. Ela fez de um jeito que nem a supercâmera da Nasa filmaria. O que ela não conseguiu disfarçar foi o ar de contentamento, o sorriso nos lábios, um certo alívio, uma satisfação tão intensa, que mais parecia um orgasmo. Disse ao marido que ameaçasse o irmão, caso ele quisesse abocanhar mais do que eles achavam que era o certo. “Alguma migalha ele há de receber” – disse a serpente-mulher. “Se não dermos ao menos um ‘cala boca’ para o miserável, ele vai urrar até o macuco fazer bico. Dê a ele o mínimo possível, depois neutralize qualquer tentativa desse imbecil de torrar a nossa paciência. Se ele ousar nos irritar, juro que não respondo por mim. De preferência despache esse idiota para o exterior. Miami seria um ótimo lugar para um bosta desses morar. Melhor seria mandá-lo para o inferno, mas a “vaca velha” nos deu a honra de esticar as canelas primeiro. Mais dia menos dia ele irá ao encontro da mamãezinha dele. Esse inútil pode nos causar grandes problemas se ficar por aqui, querido. Cuide dele!”.
Todos pensando em dinheiro, e a velha ali, esfriando no caixão. Ela dava pena. A morte a transformara num trapinho de gente. Ficara inchada, mas diminuíra de tamanho. Seu rosto parecia o rosto da infelicidade em pessoa. Sofrera em vida, e certamente, sofrera na hora da morte. E se a vida é mesmo infinita, se o espírito da gente sobrevive à morte, então ela sofrerá ainda mais, quando acordar do sono da morte e descobrir que fora roubada pelos próprios filhos.
As noras odiavam-se. Entre sorrisos e olhares de deboche, ambas assassinavam-se mutuamente. Uma destilando o seu veneno, escarrando na memória da morta. A outra, menos cruel, espiava tudo boquiaberta. Era um festival de interpretação ruim. Um show dos horrores. Todos muito abaixo do aceitável no teatro. Coisa para canastrão nenhum botar defeito. Finalmente o caixão foi selado. Uma gargalhada involuntária cortou o silêncio, mas depois voltou tudo ao normal. Enquanto o corpo da velha partia para a sua última morada, entre assovios e aplausos, um dos filhos comentou: “Já vai tarde”.
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