MENINA MÁ




Ela gostava de ler e escrever. O que era um absurdo para a época. Dizia querer ser escritora. O que deixava sua mãe de cabelo em pé. Há quem diga que ela era chave de cadeia misturada à carne de pescoço. Nada disso. Era só uma menina sonhadora, que acreditava que iria mudar o mundo. Mesmo que fosse o próprio. Era delicada, mas havia cabelinho nas ventas. Tinha a resposta na ponta da língua, e nunca desperdiçava nem a prosa nem o verso. Muito menos o verbo. Que dirá a retórica e a estilística! Gostava da “alta literatura”. O vocábulo para ela era pedra preciosa. Pedra rara!, diga-se de passagem. A Língua Portuguesa era o seu tesouro. Por isso tratava-a muito bem. Era moça de fino trato, dada ao uso do dicionário. Se tinha alguma dúvida, corria os olhos no livreto de capa marrom, e saía dele renovada. Adorava Machado de Assis. Dizia que o escritor veio ao mundo na cauda de um cometa. “Só isso para explicar tamanha inspiração” — filosofava.

Naqueles tempos de 1900, mulher não tinha direito a nada. Aliás, mulher não tinha direitos. Era criada quase como uma extensão do homem. E aquelas que eram solteiras, deviam apresar-se em arrumar marido: fosse quem fosse. É claro que as famílias escolhiam aqueles que consideravam melhor partido: endinheirados, posição social ilibada, cultura européia atilada; poder em excesso. E que fossem brancos! Isso era lei. Não a Lei Universal, criada por Deus; mas de um certo condicionamento social, e porquê não dizer moral, que delimitava a vida das pessoas, como se dissesse: “Vá por aqui. Por aqui não vá Isto é uma questão ética”. Todo mundo seguia essa fórmula à risca. Se dava certo, eu não sei. O que sei é que, segundo dizia minha avó: “Desde que o mundo é mundo as coisas são assim. O homem ordena e a mulher obedece”. Machista, não é? Verdade. Minha avó era machista. Mas ela, a nossa heroína, a tal que alguns diziam que era chave de cadeia, queria ser escritora.

Os anos passaram e ela virou uma linda mulher. De 1872, quando nasceu, até o calendário de 1908; ela finalmente chegou aos trinta e seis anos, sendo aquilo que sempre foi. Casou, enviuvou, conheceu Machado, recebeu até uma cópia autografada de “Dom Casmurro”, das mãos do Bruxo do Cosme Velho, em 1899. Em 1910 mudou-se para Paris, mas levou em si, os inúmeros Brasis que existiam dentro dela. Viveu o suficiente para ler “A um bruxo, com amor”, — epíteto dado ao escritor, por nada mais nada menos, que Carlos Drummond de Andrade: o nosso Gauche. Isso mesmo: viveu para ler. Tornou-se escritora aos quarenta e dois anos, e dizem que embora não tenha editado qualquer livro, ainda restam manuscritos seus, no fundo de alguma escrivaninha empoeirada. Eu achei que era lenda. Mas hoje, ao mexer no sótão da casa da minha avó, descobri uma caixa com fotos, e algumas quinquilharias, da época da avó dela. E no meio daquele monte de tempo empoeirado, eis que me chegam os tais manuscritos da mítica escritora. Isso mesmo ela foi minha “sei lá o quê avó”. Enfim, minha parenta do passado, não só foi escritora, como fez história. Conheceu Machado, vejam só! Entre os tais manuscritos, estava aquilo a que chamo de “prova cabal leitmotv”. Tenho aqui, em minhas mãos, a cópia autografada pelo Bruxo, do romance “Dom Casmurro”. E dentro dele, embrulhado em papel de seda, o poema de Drummond. À “A um bruxo, com amor”, então E à minha avó, e ao Carlos, e à minha parenta distante; que inspirou este borrão. E é claro, a você e a mim: enfim a Drummond.

A UM BRUXO, COM AMOR

Em certa casa da Rua Cosme Velho
(que se abre no vazio)
venho visitar-te; e me recebes
na sala trajestada com simplicidade
onde pensamentos idos e vividos
perdem o amarelo
de novo interrogando o céu e a noite.
Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.
Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada,
uma luz que não vem de parte alguma
pois todos os castiçais
estão apagados.
Contas a meia voz
maneiras de amar e de compor os ministérios
e deitá-los abaixo, entre malinas
e bruxelas.
Conheces a fundo
a geologia moral dos Lobo Neves
e essa espécie de olhos derramados
que não foram feitos para ciumentos.
E ficas mirando o ratinho meio cadáver
com a polida, minuciosa curiosidade
de quem saboreia por tabela
o prazer de Fortunato, vivisseccionista amador.
Olhas para a guerra, o murro, a facada
como para uma simples quebra da monotonia universal
e tens no rosto antigo
uma expressão a que não acho nome certo
(das sensações do mundo a mais sutil):
volúpia do aborrecimento?
ou, grande lascivo, do nada?
O vento que rola do Silvestre leva o diálogo,
e o mesmo som do relógio, lento, igual e seco,
tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do gabinete Paraná,
mostra que os homens morreram.
A terra está nua deles.
Contudo, em longe recanto,
a ramagem começa a sussurar alguma coisa
que não se estende logo
a parece a canção das manhãs novas.
Bem a distingo, ronda clara:
É Flora,
com olhos dotados de um mover particular
ente mavioso e pensativo;
Marcela, a rir com expressão cândida (e outra coisa);
Virgília,
cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida;
Mariana, que os tem redondos e namorados;
e Sancha, de olhos intimativos;
e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar lá fora,
o mar que fala a mesma linguagem
obscura e nova de D. Severina
e das chinelinhas de alcova de Conceição.
A todas decifrastes íris e braços
e delas disseste a razão última e refolhada
moça, flor mulher flor
canção de mulher nova…
E ao pé dessa música dissimulas (ou insinuas, quem sabe)
o turvo grunhir dos porcos, troça concentrada e filosófica
entre loucos que riem de ser loucos
e os que vão à Rua da Misericórdia e não a encontram.
O eflúvio da manhã,
quem o pede ao crepúsculo da tarde?
Uma presença, o clarineta,
vai pé ante pé procurar o remédio,
mas haverá remédio para existir
senão existir?
E, para os dias mais ásperos, além
da cocaína moral dos bons livros?
Que crime cometemos além de viver
e porventura o de amar
não se sabe a quem, mas amar?
Todos os cemitérios se parecem,
e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida
apalpa o mármore da verdade, a descobrir
a fenda necessária;
onde o diabo joga dama com o destino,
estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,
que resolves em mim tantos enigmas.
Um som remoto e brando
rompe em meio a embriões e ruínas,
eternas exéquias e aleluias eternas,
e chega ao despistamento de teu pencenê.
O estribeiro Oblivion
bate à porta e chama ao espetáculo
promovido para divertir o planeta Saturno.
Dás volta à chave,
envolves-te na capa,
e qual novo Ariel, sem mais resposta,
sais pela janela, dissolves-te no ar.




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