ESSA BONECA TEM MANUAL




Ela é um daqueles brinquedinhos que vêm de brinde nas embalagens de chocolate ao leite. Seu nome é Meggy. Meggy é uma princesa de Conto de Fadas. Personagem de desenho animado: Meggy é um sucesso na TV. Como as meninas do mundo todo são loucas por ela, o fabricante dos chocolates Dobby, resolveu lançá-la no mercado na versão boneca. Há Meggy’s de todos os tamanhos e formas: “Meggy Baby”, “Meggy Skater”, “Meggy Popstar”, “Meggy Top Model”, “Meggy Bride”, “Meggy Housewife”. Ela, que vem de brinde, é “Meggy Mermaid”. E como boa sereia, tem uma cauda enorme, cabelos compridos e um sorriso no rosto. Meggy é linda. Mas acontece que Meggy veio com defeito de fabricação. Meggy tem sentimentos. E isso para uma boneca é um desastre. Pessoas têm sentimentos. Pelo menos é o que se espera delas. Agora, bonecas de plástico com sentimentos, é algo impossível de conceber. Mas Meggy os tem.

Às vezes Meggy acorda amuadinha: quase melancólica. Ficara duas semanas dentro daquela caixa de chocolate e quase entrou em depressão. Suas colegas de prateleira tinham sido vendidas. Aliás, vendidas não… dadas de brinde! Foram embora, cada uma com sua caixinha de chocolate ao leite, e Meggy, a nossa Meggy, ficara para trás. Um dia, quase que por milagre, uma menina gorducha a avistou solitária na prateleira do supermercado. Ansiosa, a menina jogou-se em cima dela, e quase a engoliu com caixa e tudo. A menina, ávida por uma barra de chocolate, rasgou a caixa com fúria, comendo como se estivesse padecendo de inanição. No final, sobrou Meggy em suas mãos; a mãe jogou a embalagem com Meggy — dentro do carrinho de compras, e meia hora depois, Meggy já estava em casa. A gorducha era um tanto malcriada; muito mimada: uma típica filha única de pais desnaturados. Tinha tudo que queria, fazia birra por qualquer coisa; o pai era ausente, a mãe não dava-lhe educação. Resultado: a menina era um azougue. Meggy, resignada, foi ficando. Sabia que aquilo ali não era lugar para ela. Nas mãos daquela gorducha não duraria nada. Para piorar as coisas, a menina vivia arrastando Meggy pela casa. Às vezes esquecia-lhe em algum canto. Certa feita, Meggy foi parar na boca do cachorro. Outro dia: foi parar na vasilha do gato. Até na gaiola do periquito, o diacho da menina colocou a coitada. E Meggy chorava. Chorava de fome e de frio. Chorava até ter calafrio. Meggy queria um lar e não uma casa. Mas ali Meggy só encontrou desilusão.

Cansada de tantos maus tratos, Meggy resolveu fugir. Mas com medo, foi ficando. “O mundo lá fora é cruel demais. Ainda mais para mim que do mundo não sei nada. Melhor ficar aqui com essa rolha de poço, do que me perder nessa selva de pedra” pensava. À noite, quando a gorducha dormia, Meggy fugia para a biblioteca da casa. Lá tinha livro de Monteiro Lobato, e Meggy se divertia com as aventuras de Emília em “Reinações de Narizinho”. Meggy leu tudo que Juca escreveu. Juca era o apelido de infância de Monteiro Lobato. Assim leu toda a Coleção Sítio do Picapau Amarelo: “O Saci”, “Fábulas”, “As Aventuras de Hans Staden”, “Peter Pan”, “Reinações de Narizinho”, Viagem ao céu”, “Caçadas de Pedrinho”, “Histórias do mundo para crianças”, “Emília no país da gramática”, “Aritmética da Emília”, Geografia de Dona Benta”, “História das invenções”, “Dom Quixote das crianças”, “Memórias da Emília”, “Serões de Dona Benta”, “O poço do Visconde”, “Histórias de Tia Nastácia”, “O Picapau Amarelo”, “O minotauro”, “A reforma da natureza”, “A chave do tamanho”, “Os doze trabalhos de Hércules”, e “Histórias diversas”. Meggy leu também “A menina do narizinho arrebitado”, “Fábulas de Narizinho”, “Narizinho arrebitado”, “O marquês de Rabicó”, “A caçada da onça”, “Jeca Tatuzinho”, “O noivado de Narizinho”, “Aventuras do príncipe”, “O Gato Félix”, “A cara de coruja”, “O irmão de Pinóquio”, “O circo de escavalinho”, “A pena de papagaio”, “O pó de pirlimpimpim”, “Novas reinações de Narizinho”, e “O museu da Emília”. Como estava encantada com as histórias de Monteiro Lobato, que ela chamava de “meu Juquinha”, Meggy também leu as traduções e adaptações feitas por ele de livros infantis. Leu “Contos de Grimm”, “Novos Contos de Grimm”, “Contos de Anderson”, “Novos Contos de Anderson”, “Alice no País das Maravilhas”, “Alice no País dos Espelhos”, “Robinson Crusoe”, “Contos de Fadas” e “Robin Hood. E como era precoce, leu também os livros para adultos: “O Saci Pererê: resultado de um inquérito”, “Urupês”, “Problema Vital”, “Cidades mortas”, “Ideias de Jeca Tatu”, “Negrinha”, “A onça verde”, “O macaco que se fez homem”, “Mundo da lua”, “Contos escolhidos”, “O garimpeiro do Rio das Garças”, “O Presidente Negro/O choque”, “Mr. Slang e o Brasil”, “Ferro”, “América”, “Na antevéspera”, “Contos leves”, “O escândalo do petróleo”, “Contos pesados”, “O espanto das gentes”, “Urupês, outros contos e coisas”, “A barca de Gleyre”, “Zé Brasil”, “Prefácios e entrevistas”, “Literatura de minarete”, “Conferências, artigos e crônicas”, “Cartas escolhidas”, “Críticas e outras notas”, e “Cartas de Amor”. 
      
Ler tanto fez Meggy conhecer o mundo lá fora. Sabia que aquilo ali era o mais próximo que conseguiria chegar do mundo real. Até porque nenhum de nós sabe de fato o que é “mundo real”. De certa forma, todos nós vivemos em um Conto de Fadas. Pois ninguém tem ideia de como é a vida fora do alcance dos nossos olhos. Por mais que alguém viaje, por mais que se conheça o mundo todo, e o espaço sideral também, ainda nos falta argumento para dizer o que de fato é a vida. A vida pode ser uma xícara de chá, ou uma bola de sorvete, ou o cavalo no pasto; talvez o som do serrote lacerando a madeira, ou o cocorocó do galo cantando. A vida pode ser qualquer coisa. O que se sabe, é que essencialmente, a vida é tudo ao mesmo tempo. Tudo e muito mais. Então, para ela que era apenas uma boneca de plástico, a vida era um milagre. Bonecas de plástico não pensam. Mas como ela pensava, já estava no lucro.   

Todas as manhãs, quando a gorducha acordava, encontrava Meggy debaixo das cobertas. Inteligente como era, depois de passar a noite lendo, Meggy voltava para o quarto caminhando na ponta dos pés, e dormia o resto do dia. Como ninguém repara se bonecos dormem ou não, raramente a menina atrapalhava seu sono. Ainda mais porque passava o dia inteiro fora de casa, entre colégio, natação, balé e cursinho de inglês. Quando chegava em casa no final da tarde, a menina só queria saber de comer, videogame, televisão e dormir. Depois que fazia as lições da escola, virava para o lado e caía no sono. Aí Meggy podia ler sossegada.

Quando a menina cresceu, e de gorda ficou magra, Meggy resolveu ir embora. Na calada da noite, arrumou suas roupinhas em uma mala, penteou os cabelos, passou óleo de fígado de bacalhau na cauda, arrastou-se até a janela, e se jogou no jardim. Lá fora, arrastou-se um pouco mais, e quando aproximou-se do riacho que ficava ao lado da casa, atirou-se nele e desapareceu naquelas águas claras. Uns dizem que morreu afogada. Outros, que foi encontrar-se com Monteiro Lobato no céu.



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