UM A UM




Ela não confiava em ninguém que não tivesse lido Gabriel García Márquez. Para ela, o escritor, era o parâmetro de todas as coisas. Quando conheceu o marido, a primeira coisa que perguntou foi: “Quantas vezes você leu ‘Sem Anos de Solidão?’”. Ele, que havia lido-o uma dezena de vezes, respondeu: “muitas!”. Naquela época, os dois eram colegiais, e versados em prosa e verso, liam muito. Ela andava espevitava com laços de fita na cabeça, parecendo uma caixa de bombom. Trazia debaixo do braço “Doze Contos Peregrinos”, coisa que usava para tudo. Se estava triste, lia-o. Se estava contente: ei-lo sob seus olhos. Aquele livro era para ela uma prancha de madeira no meio do oceano. A literatura fora o seu primeiro amor. Foi através dela que descobriu o mundo, que tocou na dor sem que a dor a pudesse tocar, que viu lágrimas brotarem no meio de uma página, e de um capítulo para o outro, transformarem-se em alegria. Também tinha ingenuidade nela. Acreditava demais. Parecia que alguma coisa muito sagrada lhe dizia que a vida era para ser vivida. Jamais lamentada ou sofrida. Então ela vivia com alegria. Era uma esperança que vinha sabe-se lá de onde, que a inundava como um raio de Sol numa manhã de inverno. Aí o calorzinho chegava, aquecia a boca do estômago, eriçava os cabelinhos do braço, e toda morna, sorria. Por isso amava Gabriel García Márquez: ele era o único que conversava com ela sem desejar que ela fosse erudita. O que ele queria, e que tirava dela, era a emoção. Gabriel convidava-a todos os dias a tocar o mundo. E ela, com seus dedinhos úmidos, tocava-o.

Quando leu “Cheiro de Goiaba” quase ficou louco. Estava mergulhada na vida, e de lá não quis sair por uma semana. Refeita, releu-o pelo menos três vezes, antes de deixar tocar-se por outro. Foi o livro que tirou a sua virgindade: de tudo. Foi nele que descobriu que a Terra é azul, que o sangue é vermelho, que a alma não tem cor, que pessoas são importantes em qualquer fase da vida, que caridade é coisa que se faz desde o instante em que se nasce, que olhar para o próprio umbigo é um erro; mas tratar-se com cordialidade é um acerto, que a luz sempre nos alcança quando estamos distraídos; porque é naquele momento que brilhamos. Ela era romântica. Acreditava no poder das estrelas. Dizia que Deus se manifesta mais no animal do que no homem: pois o animal não tem vergonha de ser o que é. Enquanto o homem coloca obstáculo em tudo. Em tudo põe rótulo. Tudo etiqueta. Mas o animal, não. O animal só quer viver. Vive meio sem querer, porque só quer viver. Vai caminhando sem saber para onde vai. Visto que, segundo ela, o importante não é o destino, mas a estrada.

Aquele jovem que conheceu no colégio, como já dissemos, tornou-se seu marido. Dez anos depois, para ser exato. Foram amigos por um certo tempo, depois namoraram, entraram na faculdade, o namoro se fortaleceu, ficaram noivos, e recém-formados, casaram-se. Tiveram dois filhos logo de saída. Pois ela, que tinha pressa em viver, casou-se grávida: de gêmeos. Lindos os meninos. Lindos como os pais. Tinham o olho verde de um verde tão verde, que nem a Amazônia tem verde tão verde assim. Um deslumbramento! Ela, é claro, alfabetizou os filhos ainda no ventre. Para tal, leu Gabriel García Márquez durante os nove meses que carregou-os em si. No primeiro mês apresentou-lhes “O Amor nos Tempos do Cólera”. No segundo “Textos do caribe”. Em seguida “Memórias de minhas putas tristes”. No quarto “Crônica de uma morte anunciada”. No quinto “Memória dos prazeres”. No sexto e no sétimo “Como contar um conto”, “Do amor e outros demônios”, “O general em seu labirinto”, “O verão feliz da senhora Forbes”, “A Aventura de Miguel Littín Clandestino no Chile”, “Notícia de um sequestro”, O outono do Patriarca”, Olhos de cão azul” e “A sesta de terça-feira”. No oitava mês presenteou-os com “A incrível e triste história de Cândida Eréndira e sua avó desalmada”, “Os funerais da mamãe grande”, “Má hora: o veneno da madrugada”, “Ninguém escreve ao coronel”, “Relato de um náufrago”, “O enterro do diabo: A revoada (La Hojarasca)”, “A última viagem do navio fantasma”, “Entre Amigos”, “Obra periodísdica 1: Textos Andinos”, Obra periodística 3: “Da Europa e América”, “Um senhor muito velho com umas asas enormes” e “Obra Jornalística 5: Crônicas”. No nono mês, já sentindo a proximidade do parto, ficou quietinha afagando os rebentos, e lendo: “Viver para contar”. Quando nasceram, os meninos brilhavam. Tinham Gabriel García Márquez gravado na alma. E isso só quem viveu é capaz de entender. Brilhavam feito dois pontinhos de luz. Lindos… lindos, sim.

O tempo passou, os filhos cresceram, ela e o marido envelheceram. Dizem que vivem agora em uma cabana na Colômbia. Algo lá pelos lados de Bogotá: um vilarejo de nome La Vega. Um lugar quente e tranquilo”, — dizem. “Bom para ler”. Pois é o que fazem: leem Gabriel García Márquez todos os dias. E à noite, sorriem.

Ela, que não confia em ninguém que não tenha lido o seu escritor predileto, ama o Gabito.


CONTACT BETTO BARQUINN:


UM A UM™ © copyright by betto barquinn 2012
TODOS OS DIREITOS AUTORAIS RESERVADOS BY BETTO BARQUINN

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

ETERNAMENTE ANILZA!

PRESSENTIMENTO

COLOQUE O AMENDOIM NO BURACO DO AMENDOIM