ESPUMAS AO VENTO


Ela gostava de apagar o fogo com gasolina. Tinha um marasmo nos olhos e um cigarro entre os dentes. Tinha um orgasmo nos cornos e um sorriso entre os dedos. Armazenava sentimentos em caixas de sapato. Segunda-feira: dor. Terça-feira: dor. Quarta-feira: dor. Quinta-feira: dor. Sexta-feira: dor. Sábado: dor. Domingo: saía para passear.

Tinha espumas ao vento. Assistira “Lisbela e o Prisioneiro”, mas jogara o filme fora, e comprara um livro de culinária africana. Quando os dias eram azuis: blues. Quando o dias eram pus: ai-ai, ui-ui. Vivia na câmera do medo. Sua vida era um plano sequência de vinte e cinco segundos. No que nela havia luz: a sombra era perfeita escuridão. Seu esconderijo fora filmado com uma máquina fotográfica digital. Embora fosse mais cara que a maioria das pessoas: era descartável e funcionava à pilha. Um cuidado minimalista na decupagem, não funcionaria com ela. Talvez um pires e uma luz à vela. Um corpo quente no mármore frio. O assoalho de madeira contrastando com o teto de plástico. O sereno da madrugada. A folha de caderno voando pela sala. Uma mulher perdida no dorso do papelão. Seca como o isopor. Encharcada do contrário de sorte. Encharcada de morte. Era um exercício de linguagem. O esforço de subir a escada da vida: sem ao menos descansar. O esforço de subir a escada da vida: sem ao menos se cansar. O esforço de brincar com fogo sem se queimar. Ofegante, chegava ao topo, depois descia degrau por degrau.   

Dois lápis sem ponta e o grafite quebrado no meio. Uma lixa de unha jogada no chão. Restos de comida em embalagem de alumínio: apodrecendo no estômago. No canto da sala: café e biscoito. Tinha uma TV em braile jogada num canto. Um personagem híbrido perdido num conto. E um aspirador de pó que servia de enceradeira. Era uma corrida contra o tempo. Dois passos para frente e lá está o abismo. Dois passos para trás e lá está o cartaz: Vende-se.

Ela ainda é um bom lugar para se viver. Quem entrou nela não tem onde morar. Quem saiu dela não tem do que reclamar. Há momentos de desesperança. Há um gosto de veneno de rato na boca. Um canivete cerzido na blusa. A coisa morta, esperando: abusa. Tem sempre um Visconde de Sabugosa comendo milho ao seu lado. Tem sempre um livro de Monteiro Lobato na estante. E o que eu acho mais intrigante: Ela é a Emília e eu sou o Sítio do Picapau Amarelo.     



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Comentários

  1. Eu fico encantada quanto vejo que existe gente tão talentosa no mundo. Você é bárbaro, Betto. Tem uma lucidez, uma contemporaneidade, um estilo próprio, que é tão bom, que inebria. Você é um furacão de talento. Vejo em você múltiplas capacidades. Você é meu escritor predileto. Parabéns messssssssssmo! Você é 10!

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