CHÃO DE GIZ






Ele pegava aquele trem todos os dias. Sempre no mesmo vagão: O número 5. Sentava-se no mesmo banco: de costas para a janela. Carregava sempre o mesmo livro: “Humilhados e Ofendidos”, de Fiódor Dostoiévski. Na viagem: ia lendo. Era um trajeto longo: duas horas e cinco minutos. Do subúrbio ao centro era um pedaço difícil de aturar: a miséria ali parecia caminhar a passos largos. Às vezes: bocejava. Noutras, ficava tão concentrado, que era impossível saber se lá estava. Vivia em prece. Volta e meia ouvia-o dizer: ‘Deus é amor’. Tinha lágrimas nos olhos e um olhar contemplativo. Não parecia ser uma pessoa triste. Era latente e calado. Só isso. Tinha um andar esguio. Parecia um conde, um príncipe, um lorde, um rei. Tinha os cabelos brancos como a duna. E olhos negros de jabuticaba. Estava sempre lacrimejando. Levava o lenço ao rosto toda vez que descia-lhe uma lágrima. Parecia que lacrimejar era o estado das coisas. Era impossível medir o tamanho daquela alma. Só se sabia que era um homem bom. Quando chegávamos à Estação Central, ele saltava. Tinha um chapéu de aba curta, que usava para proteger-se do sol. Saía andando lentamento pela rua, como se caminhasse nas nuvens. Nem o barulho dos carros parecia incomodá-lo. Vivia em paz com o mundo. Às vezes o tal livro resvalava do braço. Ele arrumava-o gentilmente na axila, como os franceses fazem com suas baguetes. E lá ia ‘monsieur’ pelas ruas do centro. Nunca soube qual era o destino daquele homem. Nunca soube seu nome. Mas imagino que era um anjo voltando para o céu.  

Semana passada não o vi no trem. O vagão número 5 estava vazio. Dias depois soube que ele havia partido. Caiu na rua, bateu a cabeça e morreu. Soube que tinha mulher e filho, que deixara em algum canto do mundo, antes de se tornar infecundo. Encontraram o livro no chão, marcado por um manuscrito, que dizia: “Nós somos como moirões de cerca. Só nos sustentamos de pé porque estamos ligados uns aos outros”.   

Suas últimas palavras foram ditas por Cândido Portinari.



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Comentários

  1. Você é gente grande de verdade. Seu texto é tão incrível que fico emocionada. Parabéns, Barquinn. Você é um gênio! Bjs!

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  2. Adorei o texto, fera! Abs!

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  3. Você é um cara com uma cultura extensa e ao mesmo tempo é um cara tão simples. Fico feliz de conhecer um blog tão bom. Quem vem até aqui percebe na hora que o blog tem qualidade impecável. E quem se dá ao trabalho de ler qualquer texto seu, tem uma grata surpresa. Adorei esse texto. Impossível não gostar. Me diz onde é o fan club que quero me inscrever! Rs! Só não esquece de me dar a carteirinha! Virei seu fã número um! Abs!

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