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Quanto mais a gente amadurece, mais se dá conta que não se pode generalizar, para não correr o risco de ferir os brios do cidadão honesto. É verdade... Mas viver nesse país é muito chato. A gente faz de tudo para trilhar o caminho humanitário, fica preocupado com o bem-estar do próximo, se engaja em ações ecológicas e sociais, se joga de cabeça mesmo, em tudo que possa ajudar o outro a ter uma vida mais dígna, — mas sempre esbarra na presunção de um grupo de pessoas mal intencionadas, que só pensam em tirar vantagem em tudo. Quando vêem o bolo, ao invés de comerem uma fatia, desejam roubar imediatamente o bolo inteiro para si. Nem pensam que outros também podem querer um pedaço. Não se dão conta que enquanto comem caviar, o outro morre de fome. Para mim é melhor que todos comam o bolo e me deixem com fome, do que ser eu o culpado da fome do outro. Creio que mais por impulso do que por consciência, preferiria ficar sem o meu pedaço do bolo à comer feito um glutão, enquanto o outro cata as migalhas caídas ao chão. Digo por impulso, porque a minha ação é mais rápida que o meu raciocínio, — nessas horas de fome e miséria. Por isso fecho os olhos e deixo com que a minha moral me mostre o caminho: Quer comer, então coma!    

É o caso da descriminalização da maconha. Sei que estou mexendo em vespero de cobra, mas como não sou homem de pôr a mão em cumbuca, não vou me calar. Fica-se discutindo se libera ou não o consumo da tal erva, se prende e condena o sujeito que porta a tal droga ou libera-o e custeia seu tratamento. Entre penas pesadas e penas brandas, entre o afiançável e o inafiançável, entre o defensável e o indefensável, entre o crime comum e o hediondo, eu fico me perguntando onde fica o cidadão comum nessa história. Aliás, é inadmissível num país onde muitos morrem de fome, que alguém ouse levantar bandeiras à favor do seu pequeno mundinho burguês e dizer que isso pode para mim, mas isso não pode para o resto. Aqui não é a Holanda, não. Aqui há pessoas que morrem de fome, amigo! Não vou perder o meu tempo falando de maconha, num país em que o trabalhador se mata por um salário de fome, e no fim da vida, recebe uma merreca por anos e anos de semi-escravidão. Aqui não é a Suiça não, amigo. Aqui as pessoas morrem de fome! Eu quero é falar da descriminalização da miséria. Isso mesmo... Porque aqui as pessoas são condenadas à pobreza extrema e não vejo ninguém saindo às ruas, levantando suas bandeiras de seda importada, trajando suas roupas engomadas e aromatizadas com amaciante, – em nome dos desvalidos da pátria. Duvido que se fosse para descriminalizar os mortos de fome que vivem à margem da sociedade, se fosse por essa gente desdentada que pede esmola na rua, — alguém ia sair do seu confortável habitat e levantar uma bandeirola que fosse! Fico imaginando... Onde está esse pessoal que lota os estádios de futebol, toda quarta-feira e todo domingo, na hora que precisamos deles? Vejo multidões gritando nas ruas, arrumando briga com o torcedor adversário, empunhando no peito a sua pseudo-brasilidade em época de copa do mundo, dizendo-se “brasileiro com muito orgulho e muito amor”, gente que é capaz de enfartar quando o time perde, que trata aquele que está usando a camisa do outro time com desprezo, que xinga, humilha, corrompe, enluta, bate, assassina e machuca o seu semelhante, por uma bobagem de jogo de futebol... Onde estão esses heróis na hora que precisamos deles? Essas mesmas pessoas que dariam a vida por seus times, deveriam repensar os seus conceitos, e principalmente preconceitos, jogar seus surrados paradigmas no lixo, e após um exame de consciência completo, – deixarem de ser tão vazias. Num país onde pessoas morrem de fome amigo, o objetivo deveria ser outro. Teríamos que ter vergonha de sermos tão venais. Não quero saber de futebol, muito menos se o sujeito vai ou não ser preso porque foi pego fumando maconha. O que eu quero saber é até quando a gente vai brincar de “Alice no País das Maravilhas” e ver o outro morrer de fome, ou padecer na fila do pronto socorro, ou debaixo da ponte, ou de overdose de crack, ou por que é pobre, ou por que é filho de pobre, ou por que é mulher, ou por que é gay, ou por que é negro, ou por que é nordestino, — e fingir que não têm nada haver com isso. Tenho muito medo de viver num país onde tudo é natural e ninguém tem nada haver com isso. Desde quando roubar é natural? Desde quando aquele político corrupto (que rouba, mas faz) merece ser reeleito? Desde quando matar alguém que torce para o time adversário é correto? Desde quando matar é correto?! Desde quando um país que deixa seus filhos e irmãos morrerem de fome é o país do futuro? Só se for o “país do futuro” dos mortos de fome, – que é a cova rasa, sete palmos ao chão.

Ninguém aqui tem moral para nada e fica todo mundo com aquele discurso que um dia a coisa muda. Muda, sim. Mas de endereço. Aquele que passava fome aqui do lado, morreu, e agora é outro morto de fome que jaz ali mais à frente: Aqui jaz o país dos covardes! Por isso eu tenho muito medo de viver no Brasil. Medo, sim. Morar num país onde somos todos uns bonecos nas mãos dos governantes, que somos todos uns bonecos uns nas mãos dos outros, que cada um vive para lustrar o próprio umbigo, e que se dane o resto, — me dá muito medo. Mas se o medo a uns congela, a mim me dá ganas de continuar a lutar. Não quero ser desonesto, não quero matar nem roubar, muito menos me interessa quem ganhou o campeonato de futebol, e menos ainda, quem vai ser beneficiado com a descriminalização da maconha. Enquanto não houver o mínimo de decência nesse país, enquanto pobre for tratado na base da lavagem de porco, enquanto o preconceito e o racismo forem a menina dos olhos da nação, tornar-se-á imoral falar de outra coisa que não seja: comida, comida, comida.            


Não se pode generalizar, é verdade. Por isso quero deixar bem claro que também faço parte desse balde de bosta. Afinal, “sou brasileiro com muito orgulho e muito amor”. “Sou brasileiro e não desisto nunca”, — não é verdade?! Mas não vou torcer para o seu time nem vou fumar da sua maconha. Acredito na paz e no amor entre os homem, amigo. E vou lutar até o último dos meus dias para levar dignidade àqueles que como eu, — morrem de fome. Eles: por fome de comida. E eu: por fome de justiça. Essa é a minha bandeira, o meu time de futebol, a minha missão no planeta e a base de tudo aquilo que acredito na vida. Porque a minha caminhada espacial não vai até ali na esquina, amigo. Sou imortal. Não posso pensar só em mim, mas na humanidade inteira. Naqueles que virão, depois e depois e depois de mim, — e que nunca mais passem fome.  



® SPACEWALK© © copyright by Carlos Alberto Pereira dos Santos 2011

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Comentários

  1. Tatiane Mendonça de Albuquerque7 de julho de 2011 às 17:11

    Oi lindo! O seu texto tem tanta coerência e tanta maturidade que eu fico tão feliz de ser sua amiga, Betto. Muito legal ver um escritor seguro, talentoso, humano e visceral, que escreve tão bem porque além de inteligente foi tocado por essa força divina que é amar o próximo como a si mesmo. Você é maravilhoso, amigo! Te amo muuuuuuuuuuuito! Bjs!

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  2. Emocionante, Betto. Você é um escritor da casta de Clarice Lispector e de João Ubaldo Ribeiro. Você é 10, cara! Abs!

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  3. Olha Betto, toda vez que leio um texto seu passo a te amar muito mais do que te amava a cinco minutos atrás. Parabéns por mais essa Obra de Arte! Beijos!!!

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  4. Carlos Alves da Fonseca7 de julho de 2011 às 19:53

    Maneiríssimo, Betto! Abs!

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  5. Manuel Henrique Aragão7 de julho de 2011 às 20:02

    Bom dia, amigo! Maravilhoso texto!!! Sempre um prazer enorme vir até aqui. Abraços!

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  6. Bento da Silva Bastos7 de julho de 2011 às 20:40

    Sensacional como sempre, Barquinn! Abs!

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  7. Fabricio Damasceno dos Santos8 de julho de 2011 às 07:26

    Atual, moderno, contemporâneo, inteligente e emocionante! Adorei!

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  8. Julio Pereira de Albuquerque Damasceno Durão8 de julho de 2011 às 08:42

    Fico feliz ao ler os seus maravilhosos textos, porque percebo que você compreende que todo artista têm o dever de falar sobre assuntos que incomodam, mas que não devem ser abafados. Você tem consciência social, caro Betto. Artista de verdade é assim... Sempre antenado! Parabéns, estiloso escritor! Parabéns!!!

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  9. Amo vir ao seu blog, Betto! Texto fantástico! Bjs!!!

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  10. Um show de talento e inspiração, Betto! Parabéns!

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  11. Sempre uma delícia vir ao seu blog, Barquinn! Amei o texto!!! Bjs!

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  12. Ana Carolina Sarmento11 de julho de 2011 às 07:12

    Você é um presente para o mundo, Betto! Simples, sofisticado, moderno, contemporâneo, genial, lindo e talentosíssimo! Os seus textos são o supra sumo do estilo e da elegância. E o seu blog é um show de bom gosto. Adoooooooooooro! lol! Bjs!

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  13. Carlos Henrique Schreder11 de julho de 2011 às 17:05

    Oi Barquinn! Cara, fico muito feliz toda vez que venho ao seu blog. Véio, você escreve muito bem! Parabéns! Abração!

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