SOFT
Lispector. Por isso eu carrego o livro. Se você não me quiser, se ninguém além de mim me amar, corro para os braços de Clarice.
Hoje ela acordou decidida a não fazer nada para ninguém. Os filhos que fossem para a escola com a filha da empregada. A empregada que decidisse o que fazer para o almoço... que canto da casa iria arrumar: Se seria faisão defumado com salada de endivias ou salmão grelhado ao molho de alcaparras, levemente tostadas ao caviar, – para o jantar. E se não quisesse fazer nada, que ficasse refestelada no sofá, comendo pipoca de microondas e assisitindo “Vale a Pena Ver de Novo”. Não importava o que os outros fariam. Mortos ou vivos, não abriria conceções. Quanto a ela, iria se esbaldar! Acordara tão disposta a viver para si mesma, que pulou depressa da cama, passou uma água na cara, saiu de fininho e nem deu bom dia ao marido. Porque hoje, não. Hoje quem precisasse dela, que fosse se danar. Hoje não era dona de casa, nem mãe de família, nem filha devotada, nem esposa ilibada, – graduada em prendas do lar. Hoje era folha solta ao vento, com o espírito desgrenhado, pedindo passagem para subir ao altar. Para o coração: hoje era feriado. Para a alma: hoje era dia-santo. Era dia de fazer hidratação no cabelo, acabar com as pontas duplas e fios rebeldes, pintar as unhas de vermelho, descolorir os pelos púbicos, maquiar o corpo e a alma com tamanha calma, que tornaria invejosa, a mais pacata das almas. Cabelo arrumado, unha feita, maquiagem pronta: Chegara a hora de se esbaldar! Colocou vestido de festa, sapato de salto, olhou no espelho, deu um sorriso, pegou a bolsa e saiu. Lá foi ela toda espivitada, disposta a descobrir o mundo. No elevador, passou batom. Na portaria, pisou no pé do porteiro, e ao invés de pedir desculpas, sibilou: 'Não, obrigada'. Saiu andando na rua feito maluca, esbarrando em todo mundo, e dizendo: 'Não, obrigada'. Entrou numa loja, comprou xampu. Saiu. Entrou numa farmácia, comprou absorvente com abas. Saiu. Entrou num bar, comprou uma cerveja, bebeu num gole só, pagou e saiu. Andou, andou, andou, até chegar no shopping. Sem nem olhar para os lados, jogou-se na escada rolante e caiu na praça de alimentação. Lá tomou mais cerveja, tomou milk shake de uva, tomou batata-frita com cheddar, tomou saquê com feijoada, tomou sushi com caipirinha, degustou “A Favor do Medo”, – de Clarice Lispector, pagou a conta e saiu. Afinal, para o seu coração era dia-feriado. E em dia santo, a alma da gente vagueia por qualquer canto, em todos os lugares, por onde o espírito anseia. Da praça de alimentação, migrou para o cinema. E eis que estava em cartaz: “Meia Noite em Paris”. Lá reencontrou-se com Woody Allen e fez as pazes com ele. Desde “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” – que não se falavam direito. Por isso recusou-se a ver: “Manhattan”, “Hannah e Suas Irmãs”, “Crimes e Pecados”, “Maridos e Esposas”, “O Dorminhoco”, “A Rosa Púrpura do Cairo”, “A Última Noite de Boris Grushenko”, “A Era do Rádio”, “Desconstruindo Harry”, “Match Point – Ponto Final”, “Tiros na Broadway”, “Zelig”, “Broadway Danny Rose”, “A Outra”, “Misterioso Assassinato em Manhattan”, “Um Assaltante Bem Trapalhão”, “Bananas”, “Interiores”, “Vicky Cristina Barcelona”, “Poderosa Afrodite”, “Tudo Pode dar Certo” e “Memórias”. Esta era a lista dos vinte e três melhores filmes de Woody, que ela não tinha assistido. Mas como passado é passado e a vida não passa recibo, decidiu carregar a cruz de Woody Allen nos ombros, dizendo: 'Se a sua cruz é pesada, divide o peso dela comigo. Juntando o meu ombro com o seu ombro, não há nenhum peso-pesado, ou peso-leve que seja, que não possamos suportar'. Saiu do cinema com os olhos marejados. Não porque o filme era triste. Não porque Woody Allen morreu. Saiu do cinema com os olhos rasos d'água, porque a vida é bela. E esses pequenos momentos de ócio e solidão, são necessários para abastecer de nós mesmos, – o corpo e a alma da gente.
Voltou para casa à noitinha. O marido e os filhos já estavam dormindo. A empregada debruçada numa bacia de pipoca, – assistindo à novela das onze. O gato miando na sala. O cachorro com as orelhas ao vento. E ela ali: saciada. Estava tão feliz, que não tirou os sapatos nem a roupa. Não enrolou o cabelo. Muito menos apagou a maquiagem da cara. Estava livre de pudores. Por isso sussurrou para si mesma: 'Vai deitar, despudorada!'.
Quando estava quase pegando no sono, sentiu o macio da alma, contou dois ou três carneirinhos, e dormiu.
– É preciso mais que isso para ser feliz?
– Não, obrigada.
® SOFT™ © copyright by betto barquinn 2011
TODOS OS DIREITOS AUTORAIS RESERVADOS BY BETTO BARQUINN
TODOS OS DIREITOS AUTORAIS RESERVADOS BY BETTO BARQUINN
Betto, eu fico tão encantada com o seu talento que fico aqui parada a frente do micro, babando por seus textos. Sensacional, Betto! Amei!
ResponderExcluirVocê tem o dom de encantar com as palavras e consegue levar emoção aos nossos corações aflitos por poesia. Nós, seu leitores, somos simples mortais perto da vastidão do seu talento. Lindo texto, Betto. Você é um homem grandão, enorme, em todos os sentidos. Parabéns, meu Rei. Parabéns!
ResponderExcluirPerfeito, Barquinn! Adoro os seus textos, brow! Abs!
ResponderExcluirOs seus textos são um encanto, querido! Sucesso, meu amor!!! Beijos!
ResponderExcluirLindo, lindo Betto! Vc conhece os sentimentos humanos como ninguém... A personagem deu um tempo pra ser ela mesma nem que seja por um dia... Muito bem sacado! Amei! Bjs!
ResponderExcluirMuito maneiro esse blog, cara! Virei fã! Abs!
ResponderExcluir