SENTINELA

Ela caiu da escada com a alma à mostra. Tinha os dedos rasos d' água e na fronte o símbolo da paz. O medo não a incomodava mais. O medo não a incomodava mais que o medo. Rasgou o peito com um prego. Depois correu para perto do portão. Quis sair, mas não saiu. Quis gritar, mas não gritou. O sentinela poderia vê-la. O vendedor de carrapatos poderia atacá-la. Era o dia do absurdo. Aquele que bate-nos à porta toda vez que tentamos ser o que não somos. Não era dia de máscaras. Mas usou. Não era dia de falar. Mas falou. Ela caiu da escada por algum motivo. Ninguém tem a alma exposta à toa. Decidiu cantar alguma coisa. Não lembrou-se de nada. Então ficou parada no portão esperando o sentinela dormir. Ficou ali umas duas horas contando estrelas. Quando estava perto da meia-noite... Quando estava perto do meio-dia... Quando estava perto da rua, correu. Correu tanto que podia ter dado a volta ao mundo. Correu tanto que se tropeçasse, cairia morta. Correu numa velocidade tamanha que atravessaria a porta. Correu tanto que o sentinela acordou. Mas já era tarde. Ela já estava longe demais para ele. Longe demais para que suas mãos pudessem alcançá-la. Foi então que lembrou-se da escada. E da alma exposta ao chão. Pensou em correr de volta e resgatá-la. Mas já era tarde demais. O sentinela podia ouvir. Ali mesmo, desejou do fundo do coração, que a alma voltasse para casa. Para dentro dela. Não era dígna de desejar, mas desejou. Não era dígna de orar, mas orou. Orou tanto, que do alto daquela escada, a alma se atirou. Atirou-se aflita. Atirou-se no nada. Então correram mais. Correram até distrair o capataz. Correram tanto que caíram uma dentro da outra. Correram tanto que não voltam jamais.  

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