DIA BRANCO


Juste une journée dans la vie d'un homme:

Hoje ele acordou e estava tudo branco. Um branco de um branco tão branco que ofuscava-lhe os olhos. Seu nome, Eustáquio. Eustáquio sentou-se na cama, mãos postas ao colo, olhos vidrados. Sabia que aquele dia tinha algo de especial. Nada é tão branco à toa. Há de ter algum motivo” — pensou. “Deve ter alguma mensagem subliminar”. Como bom observador, esperou. Era uma sensação estranha. Levantar da cama àquela altura da vida seria um risco. Poderia cair. Sentia-se tonto, esmaecido, como se tivesse sido atropelado por um trator. Era mesmo uma sensação estranha. Dormira bem. Sonhara. Na noite anterior deitou-se cedo, fez as suas orações, leu algumas páginas do Alcorão, fechou os olhos e dormiu. E agora, desperto, acontece essas coisas. Um mau-estar, um bem-estar, uma vontade de rir e de chorar, um desejo incontrolável de gritar; e este silêncio ensurdecedoramente contra-sensual. Um silêncio branco. Um silêncio paradoxal. Havia uma dor como aquela que a gente sente e não sabe onde. A dor no peito também estava lá. E um nó na garganta de enforcar a alma. Sentia-se a dois passos do cadafalso. Era ele o condenado? Era ele que devia morrer? Devia ou precisava? Não sabia responder. Em meio a  tantas sensações e sentimentos, estava bem. Aquelas coisas eram o que se passava em sua cabeça. Não era a mente do corpo. Era mente da alma. Não era uma dor real. Era dor de espelho. Naquele instante parou e correu os olhos em si mesmo. Parado defronte à cama havia um enorme espelho de cristal temperado. Foi nele que Eustáquio fixou os olhos. Tentou dissipar a imagem branca que cegava-lhe os pensamentos, abriu bem os olhos e viu-se no espelho. Sabia que aquela imagem parada a sua frente não era real. O direito refletindo o esquerdo e o esquerdo refletindo o direito. Ilusão de ótica. Aquilo ali não se parecia com si mesmo. Era uma cópia mal feita de um sujeito entalhado em madeira ruim. Madeira mole e fraca. Madeira de cupim.

Eustáquio não enxergava-se assim. Em meio a ilusão de si mesmo, o branco voltou. Aí Eustáquio chorou. Ninguém sobrevive muito tempo em um lugar tão branco. Nenhum ser humano é capaz de olhar-se por muito tempo sem desabar. Naquele instante ele sentia frio e medo e torpor. Continuava imóvel na cama. Intacto. Estático. Petrificado. Ainda não era hora de levanta-se. Poderia cair. Então, sangrando por dentro; um sangue branco e viscoso, um sangue de pedra, um sangue vaporoso e mole como água, um sangue insípido, inodoro e incolor; um sangue que com o passar do tempo, evaporou. Era Eustáquio ali desintegrando. Era a alma perdida de um homem sem saber o seu lugar no mundo. Eustáquio suava. De suas mãos escorria litros e litros de gente. “A alma é branca” — pensou. “A alma não ter cor… mas é branca” — balbuciou.

Eustáquio era negro. Negro de um negro tão negro que só o negro pode ver. Um negro de alma branca? Não. Alma não tem cor. Mas estava lá… branca sem ser branca; incolor. Eustáquio chorou. Chorou rios de lágrimas. Chorou poças d’água. Chorou lagos. Chorou poços. Chorou maremotos. Chorou lagoas. Chorou cachoeiras. Chorou córregos. Chorou nascentes. Chorou afluentes. Chorou cisternas. Chorou fonte. Chorou cacimba. Chorou neblina. Chorou garoa. Chorou maré alta. Chorou maré baixa. Chorou pororoca. Chorou caixas d’água. Chorou oceanos. Chorou tempestade em copo d’água. Chorou conta-gotas. Chorou lagunas. Chorou orvalho. Chorou lentura. Chorou ondas d’água. Chorou mares e tsunamis. Aflito, pediu ao mais recente e último profeta do Deus de Abraão, que parasse com aquilo. “Maomé, faça o mundo voltar a ser colorido!” — implorou. Mas Mohammed nada respondeu. Muhammad estava naquele silêncio ensurdecedor que calava até o pensamento mais profundo. Sim, Maomé estava naquele silêncio branco, alvo, límpido, claro; feito o branco branquíssimo de anúncio de sabão em pó. O branco que só existe na mente do homem. O branco da criatividade. O branco do pensamento. Idêntico a quando esquecemos o que iríamos dizer, e exclamamos: “Deu branco!”. Era o branco de Eustáquio. O branco de Allah.

Eustáquio estava vivendo uma guerra nuclear existencial. Era o fim do mundo da mente. Aquele quarto era o ‘bunker’ da alma. De alguma forma, de algum modo, de um jeito qualquer, as coisas mudaram sem Eustáquio perceber. Do dia para a noite. Ou melhor, da noite para o dia. E tudo continuava branco. Nada era cinza. Nada de cores primárias, secundárias e terciárias. Nada de cores quentes, frias e neutras. Nada de cor. No meio daquele branco, a sua pele negra reluzia. “Negro de alma branca” — pensou. “Mas a alma não tem cor…”.

O tempo passou lentamente como uma colher de pau escorregando no fundo do caldeirão de sopa. Sopa quente. Sopa ardente. Era assim que Eustáquio se sentia: como um homem sendo cozido em banho-maria. Lado a lado. Por dentro e por fora. Eustáquio era um assado. Um assado temperado pelas vicissitudes da vida. Um assado doce e salgado. Um assado meio amargo. Um assado agridoce. Entretanto as sensações não  paravam por aí: Eustáquio era um assado queimado. Um assado que gruda no fundo da panela. Uma assado que se aproveita pouco. Um assado que se joga fora a metade e come o resto. Por isso um tanto amargo, triste, desagradável, acre, doloroso. O doce amargo do queimado. Salgado. Agridoce. Um assado branco. Branco e trágico. Branco e trágico assado branco sobre pele negra. Eustáquio preto. Preto Eustáquio. Veementemente preto em um mundo branco feito para brancos. Um mundo que manda cada macaco para o seu galho. Um mundo que não perdoa os pobres. Um mundo que não suporta os pretos. Um mundo que chama gente de gente de cor. Porque ter cor em um mundo branco é um espanto. Ter cor negra então… um horror! E era assim que Eustáquio se sentia: horrorizado. Um homem negro; de pele preta, em um mundo branco acaba sendo emparedado. Ainda mais se nesse mundo houver gente que não suporta gente de cor”.  E ele era negro retinto, não branco. Ele era preto dos pés à cabeça. Era negro de raça. Era preto de cor. Era a alma do lado de fora e a pele costurando-se por dentro. Cor arrastada, escura, dilacerada. Não era ouro sobre azul. Muito menos breviário. Era a beleza da cor e nos olhos o horror. Pois Eustáquio vivia em uma ilha cercada de preconceito por todos os lados. Uma ilha de intolerância e racismo. Uma ilha de gente que não gosta de gente. Uma ilha branca por dentro e por fora. Uma ilha triste. Um planeta triste. Pois quem vive com gente e não gosta de gente, gosta de perfumaria. Ou seja, não fede nem cheira. É como um palhaço que acha graça de graça. É como um humorista que não ri de si mesmo. É como um comediante que chora por dentro. É como sentir-se o quarto dentre “Os Três Patetas”: Larry, Moe, Curly e idiota. Era o branco no preto. E não o preto no branco. Havia mundo dentro de mundo naquele lugar. Um mundo imundo. Tanto mundo, que confuso, beirava o submundo. Um mundo dentro de outro mundo dentro de outro mundo. Era o novo mundo. Era alguém gritando: Terra à vista! Era o mundo novo. O mundo de Eustáquio.

O branco falava com ele. Eustáquio que nada sabia, nada respondia. Um branco tão branco que perturbava a alma. Um branco de guerra. Um branco antônimo da paz. Roto de perguntas e puído de respostas, Eustáquio arfava: “Que é melhor? Viver em um mundo branco para brancos ou fingir que estou em um mundo cor de rosa?” Eustáquio precisava devorar-se, deglutir-se, expelir-se; para então nascer de novo. Eustáquio tinha nas mãos o enigma de si mesmo. Coisa que não se enxerga com os olhos. Coisa que não se põe a mão porque queima. Coisa que só se entende vivendo. E ele viveu. Viveu toda a dor, todo sofrimento. Viveu as alegrias do mundo. E as agruras do submundo. Viveu dentro e fora da alma. Viveu com a boca, com os membros, com a ponta dos dedos, com a cartilagem das orelhas, com as narinas, com a curvatura das unhas, com a genitália, com a planta dos pés. Viveu milímetro a milímetro, o que tornou-o centímetro a centímetro, um homem que de metro em metro virou quilômetro. Viveu a sombra das horas: minuto a minuto. E lá estavam os segundos com seus milésimos, dizendo: “Chega!” E lá estava a fome de um homem, que saciado, alimentava-se das próprias entranhas. Eustáquio era um caminhão de gente. E apesar de solitário e posto ao avesso, tinha a sensação de ser povoado polegada a polegada por uma civilização desconhecida. Naquele instante, aquele quarto apertado, tornara-se vasto como o mundo. O universo estava ali ao seu lado. Eustáquio equidistante. Eustáquio universal. O homem dentro do homem feito mundo dentro do mundo. O homem-submundo. O homem Eustáquio. Faminto, continuou a devorar-se com sofreguidão. A alma ao vê-lo lambear-se fez o mesmo. Ambos precisavam comer a própria carne. Ambos eram canibais por definição. Ambos: consumistas. Ambos, antropofágicos. Quando vê a si mesmo o antropófago sente fome. E quando come, o gosto que fica na língua é o da alma do homem.

Assim, saciado de si mesmo, Eustáquio deixou-se ser comido pela alma; até que esta eructasse. Os gases contidos no estômago da alma explodiram no ar com a força de uma bomba nuclear. Aquela, que invadira o mundo de Eustáquio, trazendo consigo o branco de um um branco tão branco, que só o branco é capaz de enxergar. Uma vida branca e suja. Uma vida ácida e azeda. Uma vida que dialoga em silêncio com a vida que criou. Alguns chamariam-na de solidão. Mas Eustáquio preferia deixar-lhe sem nome. “Vai que o silêncio ouve e acorda” — pensou. Deve ser ensurdecer o som do silêncio. Melhor não provocar…”

Sob o abajur de luz fria; apesar de ser dia, Eustáquio continuo sentado na cama até fazer-se noite. Adepto do Islamismo, ao longo do dia fez a oração da manhã (Salát Assobh), a oração do meio-dia (Salát Addohr), a oração da tarde (Salát Al-Açr), a oração do crepúsculo (Sálat Al-Maghreb) e a oração do anoitecer (Salát Al-Ichá), rezando na direção da Caaba, que fica em Meca, a Cidade Sagrada para os muçulmanos. No início da tarde a lâmpada do abajur queimou. Mas Eustáquio não moveu sequer um músculo. Mal piscava. Tomado pela escuridão daquele dia branco e indecifrável; um dia paradoxal; um dia parado no melhor de si mesmo; um dia perdido no tempo; um dia atordoado; um dia inesquecível; um dia alegre e trágico; um dia iluminado pela poesia; Eustáquio chorou.        

Eustáquio tem muita vida. Apesar de solitário, ele não é um homem triste. Pois não há nele solidão. Também não há morte. Apenas a paz de um cemitério. Um cemitério cercado de árvores altas. Árvores encorpadas. Árvores gigantes. Milenares. Quando o homem chegou ao planeta Terra, estas árvores que banham a cabeça de Eustáquio, já estavam aqui. Silencioso como a paz de cemitério que ocupara o quarto, Eustáquio viveu cada segundo deste dia sentado à cama. Não levantou dali nem para mictar. Não precisava. Quando se vive um dia branco, as necessidades fisiológicas desaparecem. Ficam as precariedades da alma. Mas estas a gente expele fora do mictório. Pois a alma não precisa de nada que não lhe pertença. Não quando se está só consigo mesmo. Pois quem está em si está completo de si. Poético? Talvez. Enigmático? Quem sabe Mas ele, que não tinha a moral elástica, contentou-se com si mesmo. Bocejou, fechou os olhos e dormiu: branco como um fantasma.


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