DA COR DO PECADO




Acabo de lembrar-me do dia em que mamãe contratou um rapaz para o serviço doméstico. Prendas do lar era o ofício. Papai achou errado, – “afinal de contas um homem é um homem; não nasceu para passar as tardes bordando Bell Heather em um pedaço de pano” – comentou. Papai era conservador, mas reconhecia que mamãe tinha a moral ilibada: de certo sabia o que estava fazendo. Se fosse em outra época, papai diria que era um absurdo colocar um varão na flor da idade dentro de casa, ainda mais tendo duas mulheres vivendo debaixo do mesmo teto: mamãe e eu. Mas papai acalmou-se quando mamãe contou-lhe que o rapaz era um tanto afeminado. “Ele não gosta de mulher” – sussurrou languidamente no ouvido de papai. “O negócio dele são os homens”.


Mamãe tinha um sorriso sarcástico no rosto e um certo tremelique nas pernas. Parecia que sentia algum prazer em dividir aquilo com papai. Mas devido a morbidez do comentário “um tanto afeminado”, ela sentia-se ao mesmo tempo envergonhada e acalorada. “Devia ser da idade” – pensou. “São os calores da menopausa que me fazem agir assim: feito uma adolescente assanhada”. Entretanto ela comportou-se diante de papai, disfarçando o riso e mudando de assunto. Encerrou o debate dizendo que ninguém melhor do que ela podia colocar o rapaz nos eixos. Diante de tal argumento, papai calou-se.


Naquela casa era mamãe quem dava as cartas. A última palavra era sempre a dela. Todos sabiam que mamãe, religiosa que só, tinha a virtude estampada na alma. Ficara com pena do tal jovem, que com seus trejeitos de moça, segundo ela, “haveria de sofrer muito na vida”. Sem ela seria presa fácil da maldade humana. “É um invertido, coitadinho. Frágil que só. O que ele precisa é de muita oração. Delicadinho assim, não dura um dia longe dos meus cuidados. Faço isso por um objetivo maior: proteger essa pobre alma da mão do mais forte. O mundo lá fora é um perigo. Aqui dentro de casa eu amo, eu cuido. Mas lá fora, sei não. Melhor que fique aqui dentro...”. Assim mamãe protegia seu pupilo como quem protege um rebento. Era café da manhã na cama, gemada fresquinha na boquinha, leite de cabra, docinho disso, salgadinho daquilo, banho de sol, banho de lua, sabonetinho de bebê: tudo do bom e do melhor para aquele homenzarrão. Ele era a sua boneca de porcelana. Um latagão do tamanho do mundo, sendo tratado feito criança. Às vezes mamãe fazia dele gato e sapato. Havia horas que tratava-o como um príncipe. Em outras era “Gato Borralheiro”. Mamãe mimava, depois explorava. Mamãe ameigava, depois ficava dizendo que ele era mal-agradecido. “Se peço massagem nas costas, diz que está cansado. Se me ofereço para passar creme nele, ele reclama. Não sei mais o que faça com esse mangolão...” – reclamava.   


Papai era representante comercial de uma multinacional importantíssima. Vivia lá pelas bandas da América do Norte, vindo para a Escócia de seis em seis meses. Mamãe e eu ficávamos sozinhas quase todo o tempo, e ter um homem em casa nos dava total segurança, ainda mais porque há certos afazeres domésticos que dependem de um homem. Trocar lâmpada é um deles. Subir em escada nos dava vertigem. E tem também a parte hidráulica, pequenas reformas, pintura interna e externa, calefação, telhagem, serviços de jardinagem. Coisas demais para duas mulheres indefesas fazerem. Mamãe tinha a alma forte, mas sua estrutura óssea era fraquinha, fraquinha. E eu, então... Se batesse um vento saia voando. Como mamãe dizia, “o rapaz era um mal necessário. Ruim com ele. Pior sem ele”. Assim fomos vivendo os três, mamãe escondida em algum canto da casa cuidando dele, eu estudando, e a vida passando. 


O rapaz era mesmo virtuoso. Dava dicas de decoração, fazia uma Cock-a-leekie soup e  um Cranachan de dar água na boca, cortava cabelo como um profissional, sabia tudo de moda, entendia de manicura e de pedicura, tocava piano divinamente, conhecia Edimburgo como a palpa da mão, recitava poesia como um trovador, fazia depilação de virilha e era bom de massagem. “Ele tem as mãos de fada”, – dizia mamãe. “Se tivesse nascido mulher, não seria tão feminino!”. “É uma moça de calças”   confidenciava-me, pondo a mão à frente da boca, disfarçando um sorrisinho de deboche.


O tempo foi passando e comecei a reparar que a cada dia os dois ficavam mais próximos. Percebi que mamãe não parava de elogiar aqueles lábios carnudos, o corpo musculoso, a pele morena, as coxas grossas e o bumbum durinho do rapaz. Mamãe delirava quando ele aparecia na sala vestindo um kilt curtinho, sem camisa, o peito arfando testosterona, a barba por fazer, os músculos proeminentes saltando aos olhos, a voz grave e rouca, o jeito de lenhador inglês. Aquele cheiro de lavanda pós-barba deixava mamãe enlouquecida. Quando ele passava pano nos móveis ou ficava parado em cima da escada, com o intuito de tirar as cortinas para lavar, – levava mamãe ao delírio. Não tinha nada de afeminado ali. Muito pelo contrário. Se fosse comparar, papai com seu jeito de intelectual escocês do século passado, era mais sestroso que ele.


Só percebi que havia algo errado naquela amizade, quando mamãe começou a se enfeitar mais, a usar maquiagem berrante, a não repetir roupa, a usar saias curtíssimas e tornar-se adepta das gargalhadas matinais. Logo ela, que sempre foi tão tímida, agora pulava amarelinha em um pé só. Certa feita peguei os dois beijando-se no sofá. Em uma outra vi que os dois saíram do banheiro com o cabelo molhado. Era um tal de pega-pega, de pique-esconde, de pula-pula, de trepa-trepa entre os dois, que a casa mais parecia um cabaré do que uma lar de família. Isso para ser educada. Chegou um momento em que os dois nem disfarçavam a alegria que sentiam debaixo dos panos. Liam um para o outro deitados na rede, corriam nus pela relva, pulavam de mãos dadas na piscina, andavam abraçados no jardim. Mas como mamãe sabia o que estava fazendo, calei-me e jamais disse nada. Mamãe dizia que encontrara a cura da homossexualidade. “Agora ele está no caminho certo” – vangloriava-se. Eu continuei em silêncio, fingindo que não era comigo. Além de preconceituosa, e pelo jeito, mentirosa, mamãe parecia que se divertia transformando a nossa casa na sucursal de Sodoma e Gomorra. Foi aí que tive certeza de que os dois eram amantes.


O rapaz usava um perfume para cada dia da semana. Domingo era “Armani Code”, segunda “Hugo Energise”, terça “Joop!”, quarta “Armani Attitude”, quinta “Silver Shadow”, sexta “Ferrari Black”, sábado “Boss Selection”, e domingo sim, domingo não, acordava usando “Polo Ralph Lauren”, antes do almoço tomava banho, passava um pouco de “Acqua Di Gió”, e logo após o jantar, sumia, e aparecia lindo, vestindo o aroma de “Lacoste Essential”. Todos os perfumes eram presentes da mamãe. Para encurtar a história, depois de muita orgia, o tórrido romance entre mamãe e aquele que ela insistia que era “homossexual”, acabou em tragédia. Mamãe sumiu no mundo com seu rapagão, papai suicidou-se, e eu fui mandada para um orfanato de moças, que tinha mais jeito de reformatório para criminosos do que de internato de freiras.


Isto deu-se a dez anos atrás, e até o presente momento, de mamãe, não sei nem se está viva ou morta.


Onde está mamãe? Ninguém sabe, ninguém viu. Ou melhor, apaixonou-se e sumiu.




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