CARTA DE AMOR




Era o pai e o filho. Era o filho e o pai. A mulher havia morrido a pouco mais de um ano. O pai ficara sem esposa. O filho: sem a mãe. Aquilo era coisa de  novela das 9. Aquilo era dor para um metro e meio de perna. Dor para quilômetro e meio de gente. Dor que não se mede. Eles eram pobres. Muito pobres. O filho vivia reclamando de fome. Pedia pão, mas o pai não tinha pão para dar. Às vezes comiam um rato doméstico. Desses que andam pelo esgoto da casa. Para quem tem o que comer pode parecer absurdo. Mas não é, não. A fome tem cara de herege. Então não há fé que aguente viver com fome. Aí a gente reza. Aí se acende e apaga a vela. Aí a gente se joga no chão e dobra os joelhos: “Deus me socorra ou permita que eu morra. Mas não me deixes aqui sem ter nada”. O copo d’água ajuda. A fome atrapalha. A água engana a fome. Entretanto, depois de alguns dias sem forrar o estômago, a gente enfraquece. É frio, é mal-estar, é dor de cabeça. A gente põe para fora até o que não comeu. A gente troca o estômago pelas tripas. A gente emagrece. A gente desfalece. A gente morre.


Assim era a vida dos personagens desta história. Um engodo. E no meio do deserto em que se encontravam: morriam de medo. Medo do porvir. Medo do que há de ir. Medo da morte. Pai e filho desacorçoadas até o pó do osso. Duros feito pedra que não quebra.  Pai e filho juntos. Pai e filho: sós.


Depois de muito caminhar, depois de meio mundo andar, o pai conseguiu um pedaço de pão para o filho. Agora ele podia deixar os ratos de lado e roer um pedaço de pão. Quentinho. Fresquinho. Saboroso demais. O pão, que é uma dádiva de Deus, fora-lhe dado por um padeiro de bom coração. O padeiro vira o pai chorando por causa da fome do filho e resolvera ajudar. “Ainda existe gente boa nesse mundo”  desabafou o pai. “Mesmo nesse mundo imundo: ainda existe gente”.


Chegando em casa, o pai deu o pão ao filho, que quase arrancou-lhe a mão. O menino estava faminto. O estômago roncava como um labirinto. Um labirinto de sons. Depois de comer pão e meio, o menino desmaiou de cansaço. Dormiu mais do que a cama. Estômago cheio é preguiçoso. O pai, feliz, adormeceu com fome. O pão era para o filho. Não seria justo comer dele uma migalha sequer. Dormiu com fome, mas feliz. Feliz da vida. Quando acordou, viu que o filho não estava deitado ao seu lado. Ficou preocupado. Onde estaria o menino? Ao sair do barraco imundo, viu que o filho voltava da rua, com as mãos vazias. “Onde está o pedaço de pão, meu filho?”  o pai perguntou. Perdeu, foi? Comeu, foi? O que foi?  


O menino com lágrimas nos olhos, respondeu:


 Fui pegar um pouco d’água no poço e vi um menino chorando. Era fome, pai. Aí lembrei-me dos pães que sobraram. Eram dois. Tentei repartir com o menino, mas ele estava faminto. Quase arrancou-me a ponta dos dedos. Acabei soltando os pães na boca do menino e ele engoliu tudo. Acabou desmaiando de cansaço. Lembra, pai? Se deu o mesmo comigo.    


O pai sem pensar duas vezes, tirou o chinelo do pé, e deu-lhe uma surra.


 Filho ingrato! Perdeste nosso último pedaço de pão.



 Tu mesmo me disseste: “dai a quem tem fome”. Fiz o que me ensinaste. Dei a quem nada tinha. E por isso me dás uma chinelada?



O pai com lágrimas nos olhos, virou para o filho e disse:



 Além de babaca és viado!


E caiu morto no chão.




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